sábado, 23 de fevereiro de 2013

O DIREITO DE ANÁLISE


Jerri Almeida

O insigne investigador que foi Allan Kardec, sem perder o brilho da sensibilidade, soube articular o duplo caráter da revelação espírita: divina e científica. Se fosse apenas uma revelação divina ou espiritual implicaria em manter o homem num estado de passividade, impondo-lhe verdades sem o direito de exame, verificação ou discussão. Isso retomaria as antigas revelações verticalizadas do profetismo hebraico. Todavia,  o Espiritismo representa, também, uma revelação científica, pois no dizer de Kardec:

Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as ilações e aplicações. (A Gênese, Cap. 1, item 13)

Logo, o Espiritismo não segue o princípio da fé cega ou da simples crença. A liberdade de análise é inerente a condição humana. No entanto, os horizontes de conhecimentos se alargam com o tempo, em razão do desenvolvimento intelectual e moral da humanidade.  Dessa forma, o “temor” ou o medo teológico construído no passado, sede lugar a um sentimento de responsabilidade diante da própria evolução. Não se trata de nenhum castigo divino, ou coisa do gênero, mas de aprofundar a compreensão sobre as leis universais e morais que regem nossa dimensão evolutiva. O ser torna-se artífice da própria desdita ou edifica dentro de si o “reino de Deus” conforme suas opções pelas veredas do Bem e do Amor.
A rigor, a noção de “submissão” e de “fidelidade” muda de foco. Se no olhar das teologias ortodoxas do passado e do presente, o individuo deve ser submisso e fiel aos ensinos religiosos dogmatizados, agora, sob o ensino espírita, trata-se de guardarmos  fidelidade, racionalizada, aos princípios afirmativos da vida, ao Bem e ao Amor.  A fé, por vezes pervertida e desvirtuada pelo fanatismo, tem levado a negação da vida, ao crime e ao desamor.
O direito de análise é uma das mais importantes prerrogativas do ser humano. Escrevendo na Revista Espírita (outubro de 1863) num texto denominado: “Reação das ideias espiritualistas” Kardec afirmou:

Mas o homem chegou as culminâncias da inteligência. Ora, essa idade em que a faculdade de compreender está adulta, não mais pode ser conduzido como na infância ou na adolescência. O positivismo da vida lhe ensinou a procurar, dizemos mais, tornou-lhe necessário o porquê e o como de cada coisa, pois em nosso século matemático, há necessidade de nos darmos conta de tudo, de tudo calcular, tudo medir, para saber onde pomos o pé. Quer-se certeza, senão materiais, ao menos moral, até na abstração; não basta dizer que uma coisa é boa ou má, quer-se saber porque o é, e se se tem ou não razão  de a prescrever ou a proibir; ela porque a fé cega não mais tem curso em nosso século raciocinador. (KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1863, p. 294)

Ainda hoje, mesmo com os denominados grupos de estudo da doutrina espírita, ainda persiste um significativo desconhecimento entre os adeptos do Espiritismo do pensamento de Allan Kardec. Para o correto entendimento da fé na visão espírita, é fundamental nos respaldarmos nas ponderações, orientações e advertências de Kardec. A inobservância de seu método racionalista e dialético termina gerando mais uma crença superficial do que, propriamente, uma fé racional.
Não raras vezes nos deparamos com estudos, em certas Sociedades Espíritas, distantes do que preconizava Kardec, pois aos participantes é vedada a análise e discussão dos textos. Todavia, o estudo correto do Espiritismo deve permitir o espaço do debate fundamentado, da análise estruturada em argumentos lógicos, ao invés de leituras intermináveis e cansativas sem nenhum aproveitamento. Tal modelo de estudo, se é que possamos chamar isso de estudo, somente colabora para o enraizamento de crenças e, portanto, de uma fé também dogmatizada e superficial. Vejamos que Kardec é um defensor da dialética, ou seja, de um fluxo argumentativo de ideias, que por vezes geram divergências necessárias ao aprimoramento do próprio conhecimento.  Em suas palavras:

Por outro lado o Espiritismo (...) não impõe uma crença cega; quer que a fé se apóie na compreensão. (...) Assim, a cada um deixa ele [o Espiritismo] inteira liberdade de exame, em virtude deste princípio que, sendo a verdade uma, mais cedo ou mais tarde, deve sobrepô-lo ao que é falso, e um princípio baseado no erro cai pela força das coisas. As ideias falsas, postas em discussão mostram seu lado fraco e se apagam ante o poder da lógica. Essas divergências são inevitáveis no começo; são mesmo necessárias, porque ajudam a depuração e o assento da ideia fundamental; e é preferível que se produzam desde o começo, pois a doutrina verdadeira delas se desembaraça mais cedo. Eis porque sempre dissemos aos adeptos: Não vos inquieteis com as ideias contraditórias, que podem ser emitidas ou publicadas. Vêde já quantas morreram no nascedouro; quantos escritos dos quais não mais se fala! Que buscamos? O triunfo, de qualquer jeito, de nossas ideias? Não, mas o da verdade. Se, no número das ideias contrárias, algumas forem mais verdadeiras que as nossas, elas vencerão e deveremos adotá-las; se forem falsas, não poderão suportar a prova decisiva do controle do ensino universal dos Espíritos, único critério da ideias que sobreviverá. (KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1865, p. 295)

Revestido de seu conhecido bom senso, Kardec assinala que deveremos buscar a verdade, sem temermos o contraditório, lembrando, no entanto, que o grande critério está no controle do ensino universal dos espíritos. O direito de análise rompe com a ideia do “sagrado”.

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