domingo, 25 de maio de 2014

O MEDO CAMUFLADO NA FÉ

Jerri Almeida
O historiador francês Jean Delumeau, na introdução de sua magnífica obra: História do medo no ocidente, em um depoimento pessoal[1], conta que quando tinha dez anos, em uma noite de março, um farmacêutico muito amigo de seus pais morrera de forma súbita. A notícia chegou em sua casa e, naquele momento, ele descobriu o soberano poder da morte. Ela atinge pessoas com boa saúde e de qualquer idade. Sentia-se frágil, ameaçado; um medo visceral instalou-se em sua mente. Ficou doente por três meses, durante os quais foi incapaz de ir à escola.
Dois anos depois, seus pais o transferiram para um colégio de orientação religiosa (salesiano). A manhã da primeira sexta-feira de cada mês era consagrada as “litanias da boa morte”, ou seja, os alunos, na faixa dos doze anos, eram reunidos para a leitura de um texto ou de orações que traduziam inquietações sobre a morte, sempre seguidas da frase: “Misericordioso Jesus, tende piedade de nós”. Essa prática, na essência, refletia uma longa tradição da pedagogia religiosa. No centro dessas frases dramáticas, que as crianças regularmente repetiam, estava a ideia da “culpa”, minando suas consciências, vinculada a uma teologia do medo. Jean Delemeau relata que durante todo mês, num período de dois anos que permaneceu nessa escola, o traumatizante conteúdo religioso fortaleceu ainda mais seu medo, não somente pela morte, mas pelo que viria para muitos após ela: o inferno.
Ele não foi o único!
Um sentimento de insegurança, estimulado pelos eventos reais, tais como: guerras, proliferação de doenças (como o caso da peste negra que vitimou milhares de pessoas na Europa do século XIV), das intempéries climáticas e seus efeitos devastadores sobre a agricultura, e o medo teológico, que fortalecia nos indivíduos uma busca por conforto e segurança espiritual, faziam parte do universo dos temores humanos no ocidente cristão.
A necessidade, por sua vez, da religião dominante em conduzir os fiéis pelos caminhos da obediência aos princípios teológicos por ela formulados, encontrava num arcaico sentimento humano, o temor, um importante aliado.
Durante muito tempo da história ocidental, num período de disseminação de certas doenças, ou por ocasião de terremotos ou outros abalos naturais, a população atingida buscava na religião esclarecimento para seus sofrimentos. A explicação religiosa “assegurava que Deus irritado com os pecados de uma população inteira, decidira vingar-se; portanto, convinha apaziguá-lo fazendo penitência.”[2]  O medo de Deus permanecia na mente de tantos sujeitos que viam nas pestes e outros abalos naturais, a “ira divina”. Mas os sinais dessa “cólera divina” podiam vir, também, do céu pela passagem de cometas ou pelos eclipses, que provocavam sentimentos de pânico pela ideia do juízo final ou do fim dos tempos. 
Deus foi transformado, pela ignorância humana, num carrasco ávido por vingança. Havia, no entanto, algumas formas de atenuar essa relação da criatura com o Criador: submissão a Ele, sendo um bom cristão, o que equivale dizer, sendo submisso à Igreja e fazendo penitências regulares.  Todavia, essa ideia da punição divina não é uma exclusividade do pensamento cristão pós-Jesus. Os gregos divinizaram Deimos (o Temor) e Fobos (o Medo, fobia) realizando múltiplos sacrifícios/rituais para harmonizar as relações entre os indivíduos e esses “deuses”. Os romanos possuíam, também sob esse aspecto, divindades correspondentes às gregas: Pallor e Pavor. De origem Arcadiana, Pã (pânico) era uma divindade que, ao cair da noite, espalhava terror entre os  rebanhos e os pastores.
Dessa forma, o pensamento religioso associou os sofrimentos humanos, individuais e coletivos, aos impositivos divinos. Lutero, em sua Exortação à prece contra o turco, redigida em 1541, no momento em que havia a ameaça de invasão dos turcos otomanos sobre a Europa, fez a seguinte indagação: “Se Deus não se vingasse, seria ainda digno de seu augusto nome?” Lutero colocava em discussão, diante de tantas “superstições” e “idolatrias”, a própria “reputação” divina. Ora, ficaria Deus de “braços cruzados” diante de tanta insolência?
No universo do cristianismo pós-Jesus a “vingança” havia se institucionalizado:

A ideia de que a divindade pune os homens culpados é sem dúvida tão velha quanto a civilização. Mas está particularmente presente no discurso religioso do Antigo Testamento. Os homens de Igreja, aguilhoados por acontecimentos trágicos, estiveram mais do que nunca inclinados a isolá-la nos textos sagrados e apresentá-la às multidões inquietas como a explicação última que não se pode colocar em dúvida. De modo que a relação entre crime e castigo divino – já neste mundo – tornou-se uma evidência para a mentalidade ocidental.[3]

O saldo infeliz dessa ideia, construída sob a égide de uma mentalidade infantil, sem deixar de ser tendenciosa e perversa, sobre um Deus que possui os mesmos qualificativos humanos trouxe também reflexos no âmbito da fé.



[1] DELEMEAU, 2009, p. 47-48
[2] Idem, p. 201
[3] Ibidem, p. 335

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