quinta-feira, 4 de junho de 2009

MORTES & PERDAS


“A certeza de reencontrar seus amigos depois da morte, de reatar as relações que tivera na Terra, de não perder um só fruto do seu trabalho, de engrandecer-se incessantemente em inteligência, perfeição, dá-lhe paciência para esperar e coragem para suportar as fadigas transitórias da vida terrestre.”
Allan Kardec


É sempre muito complexo o relacionamento humano com as perdas. Desde o nascimento, o ser começa a perceber a importância de possuir pessoas e coisas como medida fundamental de seu relacionamento com a vida. Inicia-se com a necessidade de possuir uma mãe, uma família, um lugar onde apoiar o pequeno corpo, o alimento, roupas... Na medida em que o indivíduo vai desenvolvendo suas experiências, o ato de sobreviver e o ato de conviver lhe ensejam, naturalmente, a necessidade, mesmo que flutuante ou relativa, das conquistas, do “ter”.
Com a mesma naturalidade com que percebemos o papel da posse em nossas vidas, deveríamos perceber o papel das perdas. Mas, não é assim. A perda é sempre uma ruptura com algo ou alguém que fazia parte de nosso cotidiano e que já havíamos estabelecido uma relação psíquica e emocional de certa dependência. É nesse sentido que a idéia e a experiência da perda nos desarmoniza e nos conduz, às vezes de súbito, a uma situação desafiadora de ter que conviver ou viver sem aquela pessoa ao nosso lado ou com a falta de algo que, antes, fazia parte de nós.
A experiência de “perda”, qualquer que seja, é algo ainda não suficientemente digerido pelo gênero humano. Pela proposta desse texto, nos deteremos, efetivamente, em analisar a questão da perda diante da morte.
A confrontação com as perdas desestabiliza o construído. Mas como enfrentar tão dolorida situação? Algumas questões são fundamentais para nossa reflexão.

Perdas e sofrimento

A emoção de sofrimento, por ocasião de uma perda, representa um estado natural da condição humana. Convém lembrar, entretanto, que tal estado emocional terá uma permanência breve ou demasiada conforme o significado que atribuímos ao sentido da própria vida, e ao nível de afeto construído com a pessoa que morre. Naturalmente, quem nutre uma visão religiosa, por certo, encontrará mais reforço íntimo para compreender que a vida é feita de experiências e que, delas, fazem parte as perdas e as posses. Com isso não queremos considerar que a religião removerá os sofrimentos das perdas, mas que contribuirá para que essa dor não nos paralisem demasiadamente num estado mental negativista e desolador.
Refletir, de forma saudável, sobre a possibilidade das perdas e da transitoriedade da existência física, já é uma medida interessante de adequação do nosso mundo emocional às vicissitudes e agruras do cotidiano. Uma doença grave, um acidente fatal ou qualquer outro fato que possamos imaginar, perturbador para a vida, nossa ou de alguém com quem convivemos, muitas vezes geram tal gama de sofrimentos que o indivíduo, fragilizado interiormente, mergulha num vazio existencial, desnorteado...
Foi muito comum no século XIX o “luto histérico”, onde os parentes resistiam em aceitar a morte do outro, entregando-se à rebeldia e a revolta contra Deus em verdadeiras manifestações de histeria coletiva. É o sofrimento que gera sofrimento. Para evitar-se um sofrimento maior, naqueles momentos em que o “mundo parece desabar sobre nós”, o papel da prece, certamente, terá uma função fundamental: fortalecer o nossa vida interior, que é o espaço da coragem, da confiança, do equilíbrio... Entretanto, não podemos esquecer que há coisas que somente o tempo poderá realizar pois, perder dói e não há como não sofrer.
O desafio será evitar com que o sofrimento nos conduza ao desequilíbrio emocional, pois, nesse caso, suas derivações tenderão a desestruturar , também, nossa vida afetiva, familiar, profissional, biológica... Administrar tal sentimento é imperiosa tarefa de todos nós. Vivenciar somente a dor que a perda causou, sem movimentar recursos para o processo de readaptação, é insistir no sofrimento que caracteriza um comportamento desajustado da própria personalidade.


Recursos

Necessitamos de recursos para enfrentar as perdas. Em uma interessante crônica intitulada “As perdas & os ganhos”, a escritora Lya Luft, escreve:

“O apoio dos outros é relativo e passageiro. A força decisiva terá de vir do nosso interior, onde vai sendo depositada a bagagem de nossa vida. Lidar com a perda vai depender do que encontraremos ali: se nesse lugar crescem árvores sólidas, teremos onde nos agarrar. Se houver apenas plantinhas rasteiras, estaremos mal. Por isso, aliás, a tragédia faz emergir forças insuspeitadas em algumas pessoas, e para outras aparece como uma injustiça pessoal ou uma traição da vida.”

Sem dúvida, a forma como cada um age ou reage diante das perdas, está associada às suas construções mentais, emocionais, vivenciais... nutridas ao longo do tempo. Vejamos algumas atitudes mentais importantes:
Primeiro, pensar sobre a morte e a nossa finitude biológica é uma forma de nos prepararmos intimamente para o enfrentamento com a morte de uma pessoa querida. Sabemos que todos teremos que enfrentar tal ocasião, e, aliás, esse é o grande determinismo que marca inexoravelmente o ser biológico.
Segundo, pensarmos sobre nossa natureza verdadeira, real: espíritos imortais. A grande contribuição do espiritismo é justamente, nos desvelar essa realidade imortalista, ou seja, o corpo é somente um acessório do espírito. A morte do corpo físico não exaure ou termina com a vida do Ser. Este, continua vivo, nutrindo os mesmos sentimentos por nós, alegrando-se com nossas conquistas e seguindo o seu caminhar rumo a novas conquistas e experiências.
Terceiro, a partir disso pensarmos sobre a questão das perdas dentro de uma nova visão da vida. Quando uma pessoa com quem havíamos contraído laços de afeto e carinho morre, nós realmente a perdemos? Do ponto de vista da existência física, naturalmente, não a teremos mais conosco. Entretanto, podemos perceber que essa “perda” é transitória e, talvez, fosse melhor chamarmos isso de “afastamento temporário”, pois que, logo mais, após essa existência, retomaremos o contato pessoal e relacional. A perda ou o afastamento, nesse caso, é uma mera forma de “vermos as coisas”, mas que – no fundo – fará muita diferença.
Voltando ao pensamento da escritora Lya Luft, o melhor mesmo é “plantar árvores sólidas” em nosso mundo interior. Caso contrário, não contaremos com os recursos íntimos capazes de nos sustentar nesse momento, e, sem os instrumentos da fé racional para compreendermos o que se passa, caímos na idéia da “traição da vida”. Sim, tudo isso não é tão simples na pratica. Entretanto, são os desafios que fazem emergir forças e potenciais ou, pelo menos, oportunidades para reflexão sobre si mesmo e a vida.
A metáfora da “árvore” e da “plantinha” é oportuna. Chega um determinado momento da vida de cada um, que ficar plantando somente “plantinha rasteira” não mais atende nossas necessidades. O que seriam, então, essas “plantinhas”? Sim, todos aqueles sentimentos que limitam a vida e que lhe destitui o sentido. O pessimismo, o negativismo, a insegurança, o materialismo, entre outros, são representações concretas da metáfora da “plantinha rasteira”. Por sua vez, a “árvore sólida” é aquela que nos permite “onde nos agarrar”: todas as construções positivas efetuadas no espaço de nosso mundo íntimo e, especialmente, aquelas que nos ofertam uma visão mais ampla e racional da vida.
A árvore frondosa que atinge as alturas ou a plantinha rasteira preza ao solo, simbolizam estados da própria consciência humana. Recebemos constantemente as injunções danosas ou benéficas da vida, conforme pensamos, sentimos e conduzimos o nosso estar-no-mundo.
As escolhas são importantes. Escolher como parceiros íntimos o pessimismo ou o otimismo, a esperança ou a desilusão, a fé ou a descrença, a alegria ou a melancolia, são opções de cada pessoa. Certamente, necessitamos de motivação para revitalizarmos nossas perspectivas e o nosso caminhar. É preciso identificar um, ou vários, sentidos da vida. Sem sentido a vida não tem beleza, tudo é sombrio, desconcertante.
O homem é um ser inquieto e inquietante. Nossas inquietações representam o conteúdo das nossas fragilidades. É verdade, somos seres frágeis e incompletos. Nossa incompletude nos inquieta e atormenta e, por isso, vivemos de escolhas e experiências que nos levem a um estado maior de plenitude. Nossas inquietações também representam os significados que atribuímos as coisas. Exemplificando: a morte. Qual o significado que lhe é atribuído? O fim. Daí o termo “falecer”, chegar ao fim, acabar. Essa idéia do fim nos inquieta. Não somos seres voltados ao “nada”, nossa natureza íntima, progressista, repele essa idéia e a transforma, psiquicamente, num drama emocional.
A natureza não é simplista, é sábia. O homem não é um ser descartável, mas eterno. Aqui vale pensarmos sobre uma fábula interessante. Um homem muito simples e pobre vivia nas imediações de grande castelo fortemente guarnecido. Sem nunca ter lá adentrado, o homem vivia sonhando com as maravilhas que certamente existiriam no interior daquela fortaleza. Curioso e disposto a desvendar tais mistérios, certo dia implorou aos vigilantes que lhe deixassem entrar, seria o maior prêmio de sua vida. Um momento só. Após várias tentativas malogradas, o simples homem recebeu de um vigilante mais sensível a autorização para chegar aos jardins do castelo. Ao transpor a grande muralha, e fitar os jardins, foi tomado pela sensação de estar diante de um grande tesouro. Na verdade, ele observou somente “os jardins”, não entrou em contato com as verdadeiras jóias de ouro e pedras preciosas que a fortaleza velava em suas salas e aposentos.
Ora, o que vemos? Vemos as coisas materiais e achamos que elas são a fonte de todas as riquezas. Ignoramos que além da vida material, floresce uma riqueza muito maior, toda uma vida exuberante, pujante que não se limita a vida do corpo físico. Somos o “homem simples” que se contenta apenas com os jardins? Ou nossas inquietações nos estimulam a transpor as muralhas de uma vida simplista, reduzida meramente a um fatalismo biológico?
O que temos não perdemos. Quando contraímos laços sólidos de afeto e consideração por nossos parentes e amigos, esses laços perduram. Nem mesmo a morte os rompem.
Diante de uma situação de “perda” (já vimos que o melhor é denominarmos “afastamento temporário”) de alguém querido, necessitamos (as vezes exigimos) apoio de outros corações amigos. O apoio de outras pessoas será sempre importante mas devemos compreendê-lo, na maioria das vezes, como algo inconstante, temporário. Perceber que alguém se preocupa com nosso sofrimento é alentador, mas os estímulos reais deverão eclodir de nosso íntimo.

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