terça-feira, 28 de junho de 2011

KARDEC, COMTE E O RACIONALISMO






"Todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados."

Auguste Comte



 A grande inquietação do pensamento Ocidental, desde os gregos até os dias de hoje, remonta ao problema do conhecimento. Os caminhos para a construção do conhecimento, na expectativa de se evitar o erro e a ilusão (doxologia), depreendendo-se um distanciamento do próprio subjetivismo, determinaram a teoria do conhecimento ou epistemologia. A modernidade se insere no contexto do pensamento filosófico, através do forte debate entre racionalismo e empirismo.
 Os racionalistas confiavam na capacidade do homem em atingir as verdades universais, por meio do pensamento racional, que consistiria na faculdade humana de bem julgar, de discernir o certo do errado, o verdadeiro do falso, de forma lógica, na compreensão da própria natureza. Os empiristas, por sua vez, defendiam que o conhecimento é produto da experiência, ou seja, para eles não haveriam verdades absolutas ou dogmáticas legadas somente pela razão, mas conhecimentos relativos, a partir de uma realidade que está em constante movimento e, portanto, em transformação.
O século XVII legou, assim, todo um debate metodológico e epistemológico sobre a apreensão do conhecimento. No século seguinte, o pensamento europeu se volta, sobretudo, para a ilustração francesa. O período das luzes se impunha na cultura européia do século XVIII, de forma mais radical do que os debates entre razão e experiência. Tratava-se, agora, de depositar na razão um otimismo fundador, uma profunda convicção de que os problemas humanos seriam resolvidos por ela. O iluminismo, que servirá de fundamento teórico para a Revolução de 1789, vê na razão humana, o instrumento que liberta os grilhões da ignorância e da superstição, ao mesmo tempo em que oferece ao homem, a autonomia necessária para administrar e construir o próprio destino.
O problema da razão, no entanto, é um dos pilares da construção do pensamento Ocidental, cujas origens remontam ao povo grego, cinco séculos atrás. A radicalização da racionalidade levou a um processo de marginalização da religião e de suas imposições fundamentalistas. Os séculos seguintes herdaram uma mentalidade profundamente entranhada no absolutismo da razão, que servirá para sustentar o desenvolvimento tecnológico/industrial, ensejando o culto ã ciência, como garantia de uma nova salvação.
O exame de sua obra, principalmente no que tange aos seus comentários, evidencia que Kardec foi um homem, também, de seu tempo. Possuía uma visão profundamente influenciada pelo pensamento racionalista, mas também, por pressupostos empiristas e positivistas. Dois aspectos, nesse sentido, podem ser destacados: Primeiro: a postura de que a razão deve ser o suporte inalienável  na busca do conhecimento. Postura tipicamente racionalista. Segundo: a defesa adotada de que os fatos falam por si, independentes do pensamento construído sobre eles, ou seja, uma espécie de objetivismo epistemológico.
Há, sem dúvida, uma forte influência do Iluminismo francês no pensamento kardequiano. Entretanto, devemos lembrar que, na época de Kardec, o pensamento filosófico na França sofria, também, o impacto das ideias de Augusto Comte. Comte (1798-1857) desenvolve os fundamentos daquilo que ficou conhecido por “positivismo”. Para ele, o positivismo não seria mais uma, entre tantas correntes filosóficas, mas o último dos três estágios que a humanidade teria atingido.
No primeiro estágio, a humanidade passou pelo que Comte chamou de "teológico" e compreendia o período em que a religião era a forma mais concorrida para explicar o mundo.  O ser humano dirigia suas investigações essencialmente para a natureza intima, para as causas primeiras,  para “os fenômenos (...) produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais (...)” Esse seria o mais “atrasado” [1]. O segundo, o “metafísico”, implicou no pensamento filosófico, ainda muito abstrato, no tocante a uma explicação mais coerente da realidade. Dessa forma,  o terceiro e último estágio, ele denominou de “positivo” ou científico. No estágio positivo, o espírito humano, conforme pensava Comte, renunciaria em descobrir verdades absolutas: “(...) para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas (...)”.[2]
A rigor, o pensamento comtiano só ganhará mais espaço no meio intelectual francês na primeira metade do século XIX. Período que Kardec realiza sua formação intelectual e, posteriormente, seus estudos sobre os fenômenos espirituais. Essa influencia é bastante clara na introdução que escreve no primeiro número da Revista Espírita, em janeiro de 1858. Vejamos:

Toda ciência deve basear-se em fatos; mas estes, por si sós, não constituem a Ciência; ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos; é o conjunto de leis que os regem.  Chegou o Espiritismo ao estado de Ciência? Se se trata de uma Ciência acabada, sem dúvida será prematuro responder afirmativamente; mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a Ciência.
O exame raciocinado dos fatos e das consequências deles decorrentes é, pois, um complemento sem o qual nossa publicação seria de medíocre utilidade e apenas ofereceria um interesse secundário a quem reflete e quer dar-se conta  do que vê.  Contudo, como nosso objetivo é chegar à verdade acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e, tanto quanto o permitir o estado dos conhecimentos adquiridos, procuraremos resolver as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros. [3]  [Grifos meus]

Temos aqui, vários elementos para concluirmos que, apesar da influência que o positivismo exerceu como suporte epistemológico para suas investigações, Kardec considerava, ao contrario de Comte, o cruzamento ou o diálogo entre Religião, Filosofia e Ciência, numa convergência metodológica para a aproximação da verdade. Esse é um pensamento absolutamente subversivo para a época. E aqui começamos a perceber a importância e, certamente, a ousadia da Revista Espírita, enquanto um periódico mensal voltado para o grande público.
A preocupação de Kardec com o contexto de pensamento da época, essencialmente conservador, levou-o a deixar claro já de início que: “Nossa Revista será, assim, uma tribuna, na qual, entretanto, a discussão jamais deverá afastar-se das normas das mais estritas conveniências. Numa palavra, discutiremos, mas não disputaremos.” [4] [Grifos meus]
Há, naturalmente, uma preocupação de que a Revista Espírita trazendo  explicações novas, no tocante a vida espiritual e discutindo com base racional e empírita os assuntos antes ligados ao “sobrenatural”, passasse a ser alvo de críticas, como certamente o foi, do meio científico. Nesse sentido podemos situar a cautela de Kardec em definir o Espiritismo como uma “ciência acabada”, sobretudo, a partir do conceito de “ciência positiva” desenvolvido por Augusto Comte.[5]

NOTAS

[1] COMTE, Augusto.  Curso de Filosofia Positiva. Apud. SIMON, Maria  Célia. O Positivismo de Comte.  In. RESENDE, Antonio. (Org.) Curso de Filosofia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.  146-147.
[2] Idem.
[3] KARDEC, Allan. Revista Espírita. Janeiro/1858, Introdução.
[4] Idem.
[5] “Segundo Comte, ciência é a forma de conhecimento que,  (a) caracteriza pela certeza sensível de uma observação sistemática e pela certeza metódica que garante o acesso adequado  aos fenômenos observados; (b) relaciona os fenômenos observados a princípios que permitem combinar as observações isoladas; (c) investigar os fenômenos buscando suas relações constantes de concomitância e sucessão, isto é, suas leis.’ Cf. SIMON, 2005, P. 136-137.

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