sábado, 12 de junho de 2010

Chico Xavier e a consolidação do Espiritismo na cultura brasileira (Parte II)

IMAGINÁRIO

A participação de Chico Xavier em programas de televisão nos anos 70, quando participou, por exemplo, do famoso programa Pinga Fogo, obteve tal repercussão junto ao público, que o programa se estendeu por outros anos, gerando inclusive a produção de documentários. A projeção do médium, no bom sentido da expressão, estava voltada para o grande público. Essa exposição, por sua vez, determinava no imaginário popular brasileiro, a construção de representações imagéticas sobre o homem que, agora, diante da opinião pública, transcendia ao próprio Espiritismo.
Em todas as épocas, e de forma muito presente na história do Brasil, os homens foram capazes de criar para si, códigos, símbolos e mitos, verdadeiros receptores das aspirações mais profundas do ser humano. A figura do “herói” é sintomática e expressa essa figura supra-humana, portadora de qualificativos incomuns que, por isso mesmo, passa a ser louvada, idealizada como um modelo com o qual, no fundo, todos gostariam de se associar. Quanto mais vulnerável a condição humana, mais forte se torna sua capacidade de criar essas representações.
Se isso ocorre de forma muito clara na dimensão da política, principalmente nos momentos de mudanças sociais, operando potencialmente sobre o “vazio emocional” de certas coletividades, com a construção de uma figura “salvadora” mítico-histórica, na mesma linha, se constroem idealizações sobre homens e mulheres que, no campo religioso, destacaram-se, de alguma forma, da coletividade.
A sociologia francesa, incluindo a antropologia, a partir de Durkheim, compreendeu a vida social como essencialmente simbólica. As representações foram consideradas, dessa forma, a “trama” que tece o social e que se origina da associação entre os homens. As representações coletivas são "imagens", segundo Durkheim, que também resultam das "sensações" e dos atributos da vida psíquica. É nesse sentido que a biografia de Chico, sua ética e sua obra, na medida em que ganham repercussão no cenário sociocultural brasileiro, terminam por mexer, de alguma forma, em conteúdos que na linguagem junguiana, seriam os arquétipos coletivos. Essa dimensão Crística do homem estava nele vivenciada. Por isso sua fama ganhou, também, notoriedade internacional.
Escreveu Lewgoy sobre Chico: “Em qualquer leitura, trata-se de um personagem cercado de uma aura paradigmática, depositário e modelo biográfico de uma proposta religiosa de alta ressonância na sociedade brasileira, além de ter cumprido um papel central na criação de um espiritismo ‘à brasileira’".
Podemos pensar, no entanto, num certo dilema sociológico que surge a partir daí. Como a figura de Chico conseguiu esse espaço na cultura brasileira, marcada pela representação da “malandragem”, do “jeitinho”...? No estudo realizado por Roberto Damatta sobre a sociedade e o dilema brasileiro, no final dos anos 70, ele analisava três típicos personagens que representariam fortemente a nossa cultura, centrados em três vértices. Os tipos estudados por ele eram: a) o inflexível cumpridor de ordens, amante das normas e legalista até o extremo em seus posicionamentos. b) o “malandro”, personagem que está vinculado a inversão carnavalesca e distante da noção de hierarquia, c) o renunciante, que se relaciona à perspectiva do religioso, neutralizador das diferenças diante da morte, do sagrado e do "outro mundo".
Esses três tipos estariam, segundo o autor citado, vinculados a três vértices: a) a “ordem”, b) a “desordem”, c) a “religiosidade”. Pois bem, Chico Xavier atenderia, nesse modelo, uma dupla perspectiva: o homem voltado para o cumprimento da “ordem” e o da “espiritualidade”. Chico encarna o indivíduo disciplinado, mediador entre os homens e o “sagrado”. Herculano Pires, na década de 70, escreveu que:

O interesse crescente do público pelas mensagens e por toda a obra de Chico Xavier provém, paradoxalmente, do desinteresse absoluto do trabalho do médium. Se ele se fechasse no seu interesse pessoal ou no interesse particular deste ou daquele Espírito comunicante, tentando fazer uma obra excepcional, seria nivelado aos demais.

A construção do mito, Chico Xavier, é – devemos deixar claro – uma construção, não do próprio médium, mas do imaginário social e midiático, permeado de vácuos emocionais, inclusive sobre a própria noção de nacionalidade, associado à carência de modelos éticos mais visíveis. Nessa perspectiva da formatação mitogênica, incluem-se os próprios espíritas. Não há dúvidas que Chico Xavier representou um divisor de águas para a consolidação do Espiritismo na cultura brasileira.

domingo, 6 de junho de 2010

CHICO XAVIER E A CONSOLIDAÇÃO DO ESPIRITISMO NO BRASIL (Parte I)

NOTA INTRODUTÓRIA - Artigo publicado na íntegra na Revista "A Reencarnação" (Primeiro Semestre de 2010, no. 439 - FERGS.Porto Alegre/RS). A bibliografia completa usada nesse artigo será especificada na última postagem.


O IMPACTO DA OBRA

Foi no limiar de um mundo às vésperas da primeira grande guerra, que nasceu Francisco Cândido Xavier. O Brasil era um país predominantemente agrário, vivendo no auge da República Velha (1889-1930), sendo o café, seu principal produto agroexportador. Mas, com a crise das oligarquias e a revolução de 1930, o Brasil transitava para um novo projeto político~governamental, urbano-desenvolvimentista, sob o comando de Getúlio Vargas. Foi durante a contra-ofensiva paulista, a denominada Revolução Constitucionalista de 1932, que buscava pelo viés das armas retirar Vargas do poder, que Chico Xavier lançou seu primeiro livro: Parnaso de Além Túmulo.
A obra, uma coletânea de poesias, ditadas por espíritos de renomados poetas da literatura luso-brasileira causou furor no movimento espírita e entre os literatos da época. A polêmica torna-se maior quando se descobre que o livro tinha sido escrito por um jovem pobre de pouca instrução, do interior de Minas Gerais. Na década de 30, as obras psicografadas por Chico, posterior ao Parnaso, passam também a ganhar notoriedade na sociedade brasileira.
Conforme Giumbeli, entre 1931 a 1941, a Federação Espírita Brasileira publicou 1.411,400 exemplares de títulos espíritas. Em 1938 vem a público outra obra psicografada por Chico: Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. A obra apresentava uma narrativa da formação histórica do Brasil sob a perspectiva espiritual de Humberto de Campos. Nesse mesmo período, vivia-se o Estado Novo (1937-1945), período ditatorial comandado por Getúlio, onde o governo empenhava esforços na formatação de uma “identidade nacional”. Para Lewgoy, e outros estudiosos, a referida obra de Chico, associava o Espiritismo à constituição da nacionalidade brasileira, firmando-o em nossa cultura, numa perspectiva mítico-teológica.
Seja como for, é inegável os avanços que o Espiritismo alcançou na sociedade brasileira a partir daí. O Código Penal de 1949 mantinha artigos contra o “charlatanismo” e o “curandeirismo”, mas o termo Espiritismo já não era mais citado. A “mediunidade receitista”, tão atacada pelo meio médico, deixava de ser hegemônica, sendo substituída pela “desobsessão” e os “passes”, práticas que ganharam muita importância com a publicação das obras de André Luiz, psicografadas por Chico a partir de 1944.
Os livros ditados pelo espírito André Luiz, médico carioca desencarnado que adota esse nome como pseudômino, ganham repercussões nas camadas médias da população. André Luiz incorporava o repórter da vida além-túmulo, que através de narrativas planejadas, passava a contar suas próprias experiências, inseridas num universo relacional de outras criaturas, desvelando não somente a geografia da vida pós-morte, mas também sua própria anatomia. Tudo isso em linguagem narrativa envolvente e de fácil assimilação do público leigo.
Há, na obra de André Luiz, um claro propósito de reforçar o papel da espiritualidade sobre o universo relacional dos indivíduos encarnados. Na verdade, com André Luiz retoma-se a articulação entre a esfera religiosa e científica. Todavia, há um cunho de importância atribuído a certos espíritos, que passam a constituir um espaço de mediação entre os homens e Deus. Na representação do imaginário popular, fortemente influenciado pelo catolicismo, há uma espécie de transposição religiosa do “santo” para o “espírito de luz”, na medida em que tais idéias se vulgarizam.
A relação dos católicos que passam, portanto, a frequentar os centros espíritas no Brasil aumenta, na proporção em que a obra de Chico se prolifera. Ocorre, na medida em que os centros espíritas se multiplicam, uma espécie de aproximação, de certas idéias e práticas, do Espiritismo no Brasil com o catolicismo. Na segunda metade do século XX, o Espiritismo conquistava espaços, firmando-se como religião que havia ganhado, definitivamente, cidadania brasileira.
Se o Espiritismo, a partir dos livros de Allan Kardec e de outros autores franceses, podia ser muito sedutor para as camadas médias brasileiras, e mesmo as elites letradas, durante a primeira metade do século XX, ele no dizer de Lewgoy, ainda pouco ecoava para as pessoas que vivenciavam uma religiosidade popular, que não dispunham de recursos culturais que lhes permitissem uma identificação maior com a Doutrina Espírita.
Na década de 60 e especialmente nos anos 70, as temáticas em diversas obras psicografadas enfocam problemas vividos naquele contexto histórico: sexo, juventude, drogas, casamento, entre outros, sendo que a linguagem fica mais leve e direta. Em livros como Jovens no Além (1975) e Somos Seis (1976), a linguagem usada vai ao encontro de um público cada vez mais ávido e curioso de respostas, menos filosóficas, para questões comportamentais.

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