quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O HOMEM E A MORTE


Jerri Almeida

Ao longo de seu processo histórico o homem passou a significar, em diversas manifestações socioculturais, o seu relacionamento com a morte. A ideia de sua finitude biológica levou-o, com maior ou menor consciência, a estabelecer – desde tempos remotos – significados a esse acontecimento inexorável.  A necessidade do ser humano compreender a morte ensejou a criação de mitos, rituais funerários, modelos teóricos explicativos de sua temporalidade biológica, etc.  Da mesma intensidade com que procurou compreendê-la, o homem vem lutando contra ela. O medo do desconhecido gera insegurança, devido ao instinto de conservação. Da insegurança ou esperança, do confronto com essa realidade, nasceram  religiões e filosofias que estimularam o homem à reflexão sobre si mesmo.
Refletir sobre os significados atribuídos à morte nos ajuda a compreendê-la como experiência importante para o gênero humano. Analisando ampla bibliografia sobre o assunto, pretendemos descrever, resumidamente nesse artigo, algumas formas de relacionamento  do homem com a morte, do ponto de vista histórico, sem perder, no entanto, nossa tese central: evidenciar a morte como parceira da vida. Os significados atribuídos a morte, pelo angulo da transcendência,  nos levam a compreende-la dentro do próprio inconsciente coletivo, uma vez que o homem é um ser pluriexistencial que já vivenciou múltiplas experiências do nascer e do morrer.

Primeiros significados

A prática de enterrar os mortos, segundo Edgar Morin, conforme conhecemos, começou com o Homem de Neandertal. Não raro, encontrava-se o morto em posição fetal, o que sugere uma crença no seu renascimento. Adotou-se, também, a prática de abrir cavidade nas rochas, onde os corpos eram colocados de cócoras e coberto de pedras.  Junto ao corpo eram depositado seus objetos pessoais e alimentos. Segundo Chiavenato  pesquisadores do Museu do Homem de Paris, teriam descoberto em uma sepultura de 60 mil anos, referente ao homem de Shanidar, grãos de pólen espalhados ao redor dos fósseis. Diante de tal descoberta, concluiu-se sobre a importância dos rituais mortuários nesses grupamentos tribais.
Mais tarde, já com o Homem de Cro-Magnon, encontrou-se corpos esticados na posição horizontal de costas para baixo, ou em posição fetal.  No Mesolítico, época dos últimos caçadores e coletores, as sepulturas passam a ser ovais e pouco profundas, sendo mais comuns as sepulturas coletivas, onde identificou-se, também, indícios de oferendas ou rituais funerários. Quais os significados que esses homens ancestrais teriam dado à morte?  Difícil afirmar.  Todavia, surge a necessidade de cultuar os mortos e, ao mesmo tempo,  salvaguardar os vivos. Isso ocorre através de rituais que visavam agradar os deuses, na esperança de proteção. O sentimento religioso surge, portanto, associado a ideia do temor. E o temor será a base dos estímulos religiosos para a conduta humana nas diversas sociedades, principalmente, Antiga e Medieval.
A civilização do Nilo, por sua vez, atribuía à morte uma dimensão metafísica. Em O Livro dos Mortos, provavelmente com origem na V Dinastia (2.345 a.C.) os egípcios buscavam indicações sobre a passagem do morto pelas diversas etapas em sua jornada pós-morte.  Os rituais mortuários no antigo Egito,  tipificavam  a morte como uma continuação da vida. Daí a necessidade da preservação do corpo (privilégio, normalmente, da nobreza) para  que o espírito a ele retornasse,  após sua jornada pelo mundo dos mortos. Atribuiu-se tal importância à morte que quarenta e cinco séculos antes de Cristo, na mitologia egípcia, Anúbis ou  Anpu, era o deus da morte, presidindo o embalsamamento e o sepultamento. Acreditava-se que o corpo devia ser conservado para permitir a sobrevivência do duplo (Ka), uma espécie de matéria vaporosa e colorida que adotava a forma do corpo e do espírito. O espírito ou alma (Ba), por sua vez, era representado por uma chama ou um pássaro que voaria na direção da luz ou acompanharia o seu sepultamento.
Bem se percebe que a ideia da imortalidade da alma, do períspirito  e da  reencarnação, fazia parte da cultura religiosa, não só dos egípcios, mas de grande parte dos povos da Antiguidade. Nesse sentido, a morte personificava, no Egito, não somente a imortalidade da alma, mas, também, a “imortalidade do corpo”. A morte não era vista como “fim”, mas como um processo, imanente e transcendente  à existência corporal.  Entretanto, o destino da alma estava subordinado ao comportamento do morto, enquanto vivo.

O nascimento da morte

Segundo Long, a inevitabilidade da morte na mitologia hindu, pode ser bem compreendida em uma interessante narrativa do Mahabharata, onde um sábio tenta amenizar o sofrimento de alguém que acabou de perder uma pessoa querida, contando-lhe uma fábula sobre a origem da morte.  Segundo a história, Brahmã criou tantos seres que a Terra começou a ficar cheia a ponto de não haver mais lugar para respirar. Nessa época a morte não existia.  Nasciam multidões de criaturas mas ninguém morria. Como resultado, a Mãe Terra começou a sentir-se tão sobrecarregada com o excessivo número de pessoas que suplicou que Brahmã lhe aliviasse a “carga”. Ele conteve um pouco de sua energia criadora a fim de prover tanto a criação quanto a destruição. Com isso, Brahmã dá origem a uma mulher em túnica escarlate, olhos de intensa luz vermelha, a quem denomina “morte”. Sua missão seria a de “retirar” da Terra, a seu devido tempo, todos os seres humanos. Todavia, a morte negou-se a tal tarefa, receando, naturalmente, a ira dos parentes diante da ausência de seus afetos.  A morte afastou-se então da Terra, para levar uma vida ascética. Entretanto, Brahmã voltou a persuadi-la para que executasse seu dever. Finalmente, transformou as lágrimas de sofrimento da morte em moléstias, instrumentos para remover os seres da Terra.
A história é finalizada com um ensino moral: “Sabendo que a morte chega para todos, a pessoa não deveria sofrer. Pois tal como os cinco sentidos desaparecem quando a pessoa dorme profundamente, e depois voltam à vida quando a pessoa acorda, assim também, de modo semelhante, as criaturas que morrem vão deste mundo para outro, e depois voltam para aqui novamente, no seu devido tempo.”
Ora, o criador não poderia destruir sua própria criação! Encontrou meios de evitar uma super população na Terra, não destruindo, mas  “removendo” para outros planos da vida, as criaturas humanas. A morte, nessa fábula, representa o princípio do equilíbrio, sem o qual a vida humana na Terra seria asfixiada. É uma benção, não uma desgraça. Para alguns historiadores, entretanto, o temor da morte seria gerado pelo desenvolvimento das idéias religiosas. Os ensinos de um castigo a pós a morte para aqueles que não agiram nessa vida de forma adequada fomentaria, em diversas culturas, o medo da morte pelo que se enfrentaria depois: dores infernais, castigos eternos....

Romantismo e Realismo 

O século XIX, segundo Ariès, havia, na Europa, uma certa visão romântica da morte. Entretanto, essa relação com o imaginário sobre a morte passou, em seguida, para o plano dos fatos cientificamente analisados. Deve-se a Allan Kardec uma visão nova da morte no Ocidente. Sob suas incursões investigativas, desvelou-se uma nova atitude do homem diante da morte. Sem analisá-la de forma simplista ou misteriosa, Kardec no-la apresenta como um mecanismo da vida, ensejando ao espírito encarnado o seu natural retorno à pátria de origem.
Parece-nos que o termo “realismo” define bem o significado espírita da morte. Esse realismo espiritual, pouco a pouco, se afirma como princípio universal, onde todas significações religiosas e filosóficas convergiram num admirável sincronismo onde a morte, passará, definitivamente,  a responder pela continuidade da vida, ensejando ao homem bases mais seguras para suas vivências e experiências na Terra.

NOTAS


MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. São Paulo, Circulo do Livro. 1973. 3ª Parte, Cap. 1, Página 107
CHIAVENATO, Júlio José. A morte: uma abordagem sociocultural. São Paulo, Moderna, 1998. Página 13
JULIEN, Nadia. Minidicionário Compacto de Mitologia. 1ª ed. São Paulo, Rideel, 2002. Páginas 38, 259, 260.
LONG, J. Bruce. Phd. A Morte que termina com a morte no Hinduísmo e no Budismo. In. Morte Estágio Final da Evolução. Elisabeth K. Ross. Nova Era.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Tradução: Priscila Viana. Rio de Janeiro, Ediouro, 2003. 

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