sexta-feira, 8 de março de 2013

ENCARANDO A RAZÃO


Jerri Almeida

No século XIX a cultura européia estava sob profunda influencia do racionalismo cartesiano e da física newtoniana do século XVII. A cultura e o pensamento moderno nascem sob a égide da razão que se libertava dos grilhões ancestrais da dominação religiosa. 
A modernidade se insere no contexto do pensamento filosófico, através do forte debate entre racionalismo e empirismo. Os racionalistas confiavam na capacidade do homem em atingir as verdades universais por meio do pensamento racional, que consistiria na faculdade humana de bem julgar, de discernir o certo do errado, o verdadeiro do falso, de forma lógica, na compreensão da própria natureza. Os empiristas, por sua vez, defendiam que o conhecimento é produto da experiência, ou seja, para eles não haveriam verdades absolutas legadas somente pela razão, mas conhecimentos relativos, a partir de uma realidade que está em constante movimento e, portanto, em transformação.
O século XVII legou, assim, todo um debate metodológico e epistemológico sobre a apreensão do conhecimento. No século seguinte, o pensamento europeu se volta, sobretudo, para a ilustração francesa. O período das luzes se impunha na cultura européia do século XVIII, de forma mais radical do que os debates entre razão e experiência. Tratava-se, agora, de depositar na razão um otimismo fundador, uma profunda convicção de que os problemas humanos seriam resolvidos por ela. O iluminismo, que servirá de fundamento teórico para a Revolução de 1789, vê na razão humana, o instrumento que liberta os grilhões da ignorância e da superstição, ao mesmo tempo em que oferece ao homem, a autonomia necessária para administrar e construir o próprio destino.
A radicalização da racionalidade levou a um processo de marginalização da religião e de seu dogmatismo. Os séculos seguintes herdaram uma mentalidade profundamente entranhada no absolutismo da razão, que servirá para sustentar o desenvolvimento tecnológico/industrial, ensejando o culto à ciência, como garantia de uma nova salvação.
No exame de sua obra, principalmente no que tange aos seus comentários, percebemos que Kardec foi um homem de seu tempo. Possuía uma visão profundamente influenciada pelo pensamento racionalista, mas também, por pressupostos empiristas e positivistas. Dois aspectos, nesse sentido, podem ser destacados: Primeiro: a postura de que a razão deve ser o suporte inalienável  na busca do conhecimento. Postura tipicamente racionalista. Segundo: a defesa adotada de que os fatos falam por si, independentes do pensamento construído sobre eles, ou seja, uma espécie de objetivismo epistemológico.
Há, sem dúvida, uma forte influência do Iluminismo francês no pensamento kardequiano. Entretanto, devemos lembrar que, na época de Kardec, o pensamento filosófico na França sofria, também, o impacto das ideias de Augusto Comte. Comte (1798-1857) desenvolve os fundamentos daquilo que ficou conhecido por “positivismo”. Para ele, o positivismo não seria mais uma, entre tantas correntes filosóficas, mas o último dos três estágios que a humanidade teria atingido.
No primeiro estágio, a humanidade passou pelo que Comte chamou de "teológico" e compreendia o período em que a religião era a forma mais concorrida para explicar o mundo.  O ser humano dirigia suas investigações essencialmente para a natureza intima, para as causas primeiras,  para “os fenômenos (...) produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais (...)” Esse seria o mais “atrasado”. (SIMON, 2005, p. 146-147)
 O segundo, o “metafísico”, implicou no pensamento filosófico, ainda muito abstrato, no tocante a uma explicação mais coerente da realidade. O terceiro e último estágio, ele denominou de “positivo” ou científico. Nesse estágio, o espírito humano conforme pensava Comte, renunciaria em descobrir verdades absolutas: “(...) para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas (...)”. (SIMON, 2005, p. 146-147)
A rigor, o pensamento comtiano conquista mais espaço no meio intelectual francês na primeira metade do século XIX, período em que Kardec realiza sua formação intelectual e, posteriormente, seus estudos sobre os fenômenos espirituais. Essa influencia é bastante clara na introdução que ele escreve no primeiro número da Revista Espírita, em janeiro de 1858:

Toda ciência deve basear-se em fatos; mas estes, por si sós, não constituem a Ciência; ela nasce da coordenação e da dedução lógica dos fatos; é o conjunto de leis que os regem.  Chegou o Espiritismo ao estado de Ciência? Se se trata de uma Ciência acabada, sem dúvida será prematuro responder afirmativamente; mas as observações já são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios gerais, onde começa a Ciência.
O exame raciocinado dos fatos e das consequências deles decorrentes é, pois, um complemento sem o qual nossa publicação seria de medíocre utilidade e apenas ofereceria um interesse secundário a quem reflete e quer dar-se conta  do que vê.  Contudo, como nosso objetivo é chegar à verdade acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e, tanto quanto o permitir o estado dos conhecimentos adquiridos, procuraremos resolver as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros. (KARDEC, 1858, Introdução)  

Temos aqui, vários elementos para concluirmos que, apesar da influência que o positivismo possa ter exercido em suas investigações, Kardec jamais desprezou, ao contrario de Comte, a articulação entre diversas áreas do conhecimento, numa convergência metodológica para a aproximação da “verdade”. Kardec foi cauteloso, sob alguns aspectos, com os conceitos utilizados para se definir o Espiritismo. No texto acima, mantém precaução em afirmar ser o Espiritismo uma “ciência acabada”, pois reconhecia que a apreensão do conhecimento é um processo dinâmico que está em constante movimento.
O Espiritismo nasceu da análise meticulosa de Kardec sobre os fenômenos das mesas girantes. O conjunto dos conhecimentos obtidos dos espíritos, aplicando a eles o princípio da universalidade do ensino, do livre exame e da coerência com a razão abriram novos horizontes para o entendimento da vida. A Doutrina Espírita desantropomorfiza Deus, apurando reflexões sobre a Causa Primeira de todas as coisas. Deus como o Ser Supremo nos compreende sob os parâmetros de seu amor absoluto, com o qual nos oportuniza múltiplas experiências evolutivas. Fomos criados pelo Perfeito, logo, somos perfectíveis!
Deus oportuniza sempre, não castiga (por que é amor) e não perdoa (pelo fato de não se magoar). Espiritualmente passamos por fases de aprendizado, principalmente, sobre nossas potencialidades internas. Um dos grandes aprendizados é quando descobrimos que as leis divinas estão arquivadas em nossa consciência. Como afirmou Dora Incontri: “Pode-se dizer que entramos em novo diapasão, numa compreensão mais vasta, mais nítida da conexão perfeita e bela de todas as coisas, do sentido e do propósito da existência e do universo...” (INCONTRI, 2004, p.107)
O Espiritismo não subjuga a consciência de ninguém! Pelo contrário, liberta-a das crendices e dos medos construídos pelas religiões. Todavia, no seu amplo horizonte doutrinário, esclarece sobre as responsabilidades no uso do livre-arbítrio, na medida em que o sujeito é co-criador de seu próprio destino. Os efeitos éticos e morais do Espiritismo decorrem dessa nova cosmovisão da vida.
A imortalidade da alma e a reencarnação, por exemplo, deixaram os pressupostos de uma mera crença, sendo elevadas ao patamar das evidências científicas. Allan Kardec, escrevendo na Revista Espírita de 1862 sobre as consequências da doutrina da reencarnação afirmou o seguinte:

Mas pretender impor a fé cega neste século é desconhecer a época em que vivemos. A gente reflete, queira ou não queira; a gente examina, pela mesma força das coisas; quer saber como e por que.  O desenvolvimento das indústrias e das ciências exatas ensina a olhar o terreno onde se põe o pé e, por isso, a gente sonda aquele onde marcharemos, segundo dizem, depois da morte.  E se não o encontramos sólido, isto é, lógico e racional, dele não nos ocuparemos. (...) Certamente a vida futura não é uma coisa palpável, como uma estrada de ferro e uma máquina a vapor; mas pode ser compreendida pelo raciocínio. (...) Interroguem-se àqueles que negam a vida futura e todos dirão que foram conduzidos à incredulidade pelo próprio quadro que lhes era apresentado, com seu cortejo de diabos, de labaredas e de sofrimentos sem fim. (1862, p. 104-105)

A rigor, Kardec enfatiza o roteiro de reflexão que todo adepto do Espiritismo deveria seguir para a conquista da fé racional,  além de atribuir à incredulidade de muitos aos ensinamentos da tradição religiosa, por vezes, infantis diante dos novos tempos.  Aquilo que denominamos de “pilares ancestrais da fé”: revelação, temor, submissão e fidelidade, são elementos revisitados pela crítica espírita. Apelando para a razão e agregando novos conhecimentos, Kardec não desconsiderou o papel da “revelação”, uma vez que tratou do tema com profundidade em A Gênese, Cap. 1, sob o título: Caráter da revelação espírita.

Referências Bibliográficas

INCONTRI, Dora. Para Entender Allan Kardec. Bragança Paulista-SP: Lachátre, 2004.
KARDEC, Allan. Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos espíritos. Revista Espírita. Outubro de 1865. Edicel.
KARDEC, Allan. Revista Espírita. Janeiro/1858, Introdução. Edicel.
KARDEC, Allan. Reação das ideias espiritualistas. Revista Espírita. Outubro de 1863. Edicel.
KARDEC, Allan. Consequências da Doutrina da reencarnação sobre a propagação do Espiritismo. Revista Espírita. Abril de 1862. Edicel.
KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. 1 – O Caráter da Revelação Espírita.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Introdução, item XIII.  Conclusão, item VII.
KARDEC, Allan. A Religião e o progresso. Revista Espírita, julho 1864. Edicel.
PIRES, J. Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. 2ª. ed. São Paulo: FEESP, 1993. p. 20.
SIMON, Maria  Célia. O Positivismo de Comte.  In. RESENDE, Antonio. (Org.) Curso de Filosofia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.  146-147.

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