quinta-feira, 22 de abril de 2010

O INÍCIO DO ESPIRITISMO NO BRASIL - BREVES APONTAMENTOS

O contexto sociocultural e mental da França, pós-revolucionária, vivia o irreconciliável dilema entre o cientificismo irredutível e o pensamento religioso, já devidamente desgastado em seu discurso ético. A Europa via-se diante do emergente processo de industrialização, iniciada na Inglaterra no final do século XVIII, definindo novos ritmos sociais, ao lado das teorias evolucionistas (darwinismo, marxismo, positivismo..) que permearam o pensamento filosófico e científico do século XIX. Havia uma “certeza”, quase ingênua, de que a técnica aliada à ciência, elevasse a humanidade para um novo patamar de plenitude.
Surgindo no século XIX, na França, e convivendo com esse quadro sociocultural, o Espiritismo, por um lado, alinha-se levemente com as teorias evolucionistas e racionalistas de sua época, mas afasta-se delas, na medida em que traz novos elementos de análise e estudo, dilatando as fronteiras do pensamento organicista vigente. O Espiritismo formulando uma teoria evolucionista bastante plausível, sem abandonar totalmente os recursos metodológicos vigentes nas academias, foi conquistando cada vez mais espaço no solo francês e europeu.
Durante um discurso que lhe foi oferecido em Lyon, Allan Kardec afirma: “O Espiritismo propagou-se primeiro nas classes esclarecidas, para lhe dar mais crédito; depois, para que fosse elaborado e expurgado das idéias supersticiosas que a falta de instrução nele poderia introduzir.”
Apesar de contar com os ataques naturais, as críticas corrosivas de diversos setores, a Doutrina Espírita ganhou outros países da Europa, cruzando o oceano com extrema rapidez. No Brasil, as primeiras traduções das Obras de Kardec remontam ao período final do século XIX, primeiro pelo jornalista baiano Luiz Olimpio Telles de Menezes, já na década de 1860, e pelo médico Joaquim Carlos Travassos, por volta de 1875.. Conforme anunciara Kardec, as idéias espíritas articulavam-se, também no Brasil, entre a classe social mais erudita. No entanto, intelectuais como Castro Alves, em 1865, conforme anotou Machado, escrevendo para o folhetim o Diário do Rio de Janeiro, após indagar se o leitor acreditava na nova doutrina, afirmara sua posição em contrário a “essas superstições.”
Com a instalação da República em 1889, muito embora o princípio constitucional da liberdade religiosa e do Estado laico, o meio médico que via na mediunidade uma espécie de transtorno mental do médium, pressionou o governo para uma cruzada contra essas práticas. Com isso, o Código Penal de 1890, em seu artigo 157, qualificava como “delito” as práticas dos “médiuns receitistas.” Além disso, ainda no final do século XIX lia-se notícias do tipo:

"Não foi sem razão que no dia 19 de janeiro deste anno encetamos accerrima campanha sobre esta seita religiosa, que se encobre cynicamente sob o apparatoso nome de SPIRITAS. Seita que acarreta comsigo um grande numero de responsabilidade, visto a correntesa que toma, dia para dia; a onda cresce, se avoluma, arrebenta, vomitando do seio pejado de sombras um sem numero de victimas inconscientes." (A Gazetinha, 6/2/1896, p. 1)

Como se isso não bastasse, nas primeiras décadas do século XX, médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, não tinham dúvidas na associação entre Espiritismo e loucura, uma verdadeira questão de “saúde pública”. Em sua tese de doutorado em psiquiatria, defendida naquela faculdade em 1929, João Coelho Marques escreveu:

"O combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocanina...), à tuberculose, à lepra, às verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o aniquilamento das energias vitais, físicas e psíquicas de nosso povo, da nossa raça em formação."

Alguns psiquiatras chegaram a divulgar estatísticas, evidentemente sem cunho científico, apontando o Espiritismo como uma das principais causas de “distúrbios mentais” no país. Obviamente que com a estruturação do Movimento Espírita no Brasil, principalmente a partir de 1884 com a fundação da Federação Espírita Brasileira, e o processo de Unificação daí decorrente, tais ataques passaram a receber o devido esclarecimento da opinião pública. O próprio Bezerra de Menezes ocupava coluna, escrevendo no famoso jornal “O Paiz”, do Rio de Janeiro. Seu esforço por esclarecer os argumentos que buscavam associar o Espiritismo com a loucura, lhe motivou a escrever, no final do século XIX, seu livro “A loucura sob novo prisma”, onde defende a tese da interferência, também em certos casos de loucura, de agentes espirituais com influência obsessiva sobre o encarnado.
Mas o Espiritismo, apesar de todos os esforços dos espíritas da época, ainda não havia se consolidado. Tratado como doutrina de loucos por uns, associado a uma “seita”, por outros, sua consolidação só veio com a figura paradigmática de Francisco C. Xavier, no século XX. Para o antropólogo Bernardo Lewgoy, Chico foi o grande mediador entre o Espiritismo e a cultura brasileira.

Bibliografia

KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862 e outras viagens de Kardec, p. 191.
MACHADO, Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo. Niterói: Lachátre, 1996. P. 63.
MIGUEL, Sinuê Neckte. Espiritismo fin de siècle: a inserção do Espiritismo no Rio Grande do Sul (1896-1898). In. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano II, n. 4, Mai. 2009 –
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao - Artigos
ISAIA, Artur Cesar. Loucura Coletiva? In. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, junho de 2008. P. 20-25.

domingo, 18 de abril de 2010

A FALÁCIA DO DIA "19 DE ABRIL"

Datas comemorativas representam, via de regra, acontecimentos que nem sempre encontram motivos reais e históricos que as justifiquem. O “dia do índio” se ajusta bem nesse argumento. O dia 19 de abril passou a ser comemorado no Brasil em 1944, através de uma determinação de Getúlio Vargas, já no final do Estado Novo. De lá para cá, renovam-se as manifestações bucólicas, principalmente nas escolas, onde as crianças tradicionalmente recebem o desenho de um “indiozinho” cheio de penas na cabeça e na cintura para pintar. Idilicamente, construíu-se um índio mitológico, por vezes, distante do personagem real, extirpado de sua cultura original, violentado pelo branco que, num ímpeto belicoso, toma suas terras e sua alma.
Calcula-se que na época em que a frota cabralina realizou o “achamento” (termo usado por Pero Vaz de Caminha) do Brasil, aqui existia uma população indígena que variava entre 1 a 5 milhões . De lá para cá, o decréscimo estatístico representou um verdadeiro genocídio. Em 1957, o etnólogo Darcy Ribeiro, em seus estudos calculava, na segunda metade do século XX, uma população indígena entre 70 mil a 100 mil indivíduos. Na prática, se colocássemos toda a população indígena existente no Brasil, atualmente, no estádio do Maracanã, que possui capacidade para 200 mil pessoas, sobraria muitos lugares.
Estima-se que só na costa litorânea do Brasil do século XVI, vivessem aproximadamente um milhão de Tupinambás . Entretanto, o contexto de expansão marítima-européia, dos séculos XV e XVI, exigia que os nativos fossem combatidos, pelo menos, todos aqueles que resistiram à escravização do trabalho colonial. O controle territorial da faixa litorânea representou, inicialmente, o processo centenário, que – historicamente – vem se efetivando de usurpação do território indígena no Brasil. Violentados, reduzidos à escravidão e, por fim, dizimados. Isso faz lembrar a famosa frase do general Custer, na marcha para a conquista do Oeste americano: “Índio bom é índio morto.”
O tormento dos nativos brasileiros com a ferocidade européia não foi exclusividade só nossa. Três anos após ter descoberto a América, Cristóvão Colombo dirigiu pessoalmente a campanha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana: “um punhado de cavaleiros, duzentos infantes e alguns cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios” O próprio Colombo havia nominado de “índios”, os nativos que havia encontrado quando, ao chegar na América, pensou ter circunavegado a Europa e chegado as Índias. O navegar genovês morreu sem haver descoberto o seu erro.
A rigor, o processo histórico se estrutura nas mudanças e nas permanências. Se, no entanto, é relativamente fácil identificarmos as mudanças, o mesmo não ocorre com as permanências. Essas são, muitas vezes, tornadas “invisíveis”, ou mesmo lúdicas no cotidiano. Os índios não se integraram culturalmente ou socialmente à sociedade brasileira e, por outro lado, também enfrentam enormes dificuldades para manter sua cultura original. A invasão de terras indígenas, ainda hoje, é fruto de uma cultura exploratória sedimentada pela racionalidade portuguesa colonial, cujos reflexos insistem em permanecer na mentalidade contemporânea.
Pelo menos, hoje já não se discute mais se os índios possuem ou não alma. Todavia, muitos índios espalhados pela imensa territorialidade brasileira, acabam se proletarizando ou virando mendigos, sentados em uma calçada qualquer à espera de doações para sobreviverem, distantes de sua origem comunal. Sendo assim, o “achamento” do Brasil consubstanciou o genocídio das populações indígenas e sua conseqüente fragmentação sócio-cultural e territorial.
Sobre as demarcações de terras, vale lembrarmos que em 1996, o então sociólogo-presidente, Fernando H. Cardoso, em seu decreto 1.775/96, vulnerabilizava a posse das terras indígenas, na medida em que facilitava aos posseiros interferirem na definição dos limites das áreas a serem demarcadas. . No governo de FHC foram realizadas 63 demarcações de terras indígenas, sendo que 254 haviam sido demarcadas em governos anteriores, restando ainda 239 a demarcar. Esses números mostram, ainda hoje, que a questão indígena está longe de ser apreciada em seu lídimo valor.
O dia 19 de abril, a semelhança do 13 de maio, do 20 de setembro, do 15 de novembro, e de tantas outras datas comemorativas, quase sempre comemoradas num espírito de superficialidade, deveriam servir para remeter o cidadão e a sociedade a um momento de reflexão crítica e revisão de seu processo histórico. Somente assim poderemos transitar para um nível mais elaborado de lucidez social, em face dos desafios que persistem, na base estrutural da nossa civilização e do nosso país.


Referências

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 20ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
HECK, Egon Dionísio. 500 Anos de conquista e dominação. In. RAMPINELL, Waldir José, OURIQUES, Nildo Domingos (Orgs) Os 500 anos. A conquista interminável. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
LOPEZ, Luiz Roberto. A Aventura dos Descobrimentos. Porto Alegre: Novo Século, 1995.
MAESTRI, Mário. Os Senhores do Litoral. Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambá no Litoral Brasileiro. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1994.
MELATTI, Júlio Cezar. Índios no Brasil. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1994.
RAMPINELL, Waldir José, OURIQUES, Nildo Domingos (Orgs) Os 500 anos. A conquista interminável. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.

Pesquise no Blog

Loading

TEXTOS/ARTIGOS ANTERIORES