quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A LIQUIDEZ CULTURAL E O ESPIRITISMO - Parte II


Allan Kardec, na metade do século XIX já havia escrito no item IV da conclusão de O Livro dos Espíritos, que:

Quando, porém, conseguir a soma dos gozos que o progresso intelectual lhe pode proporcionar, verificará (o homem) que não está completa a sua felicidade. Reconhecerá ser esta impossível, sem a segurança nas relações sociais, segurança que somente no progresso moral lhe será dado achar.

Por muito tempo, desde Aristóteles, se tenta encontrar respostas para  explicar o que é uma “vida boa”. O ser humano tem buscado equacionar essa questão através da satisfação dos desejos, intensificando a busca pelo prazer material. Para lográ-lo, muitos têm rompido, e corrompido, com os valores mais nobres, que dignificam o próprio sujeito. O prazer de uns, conquistado pela exploração de muitos denota a carência dos valores morais do qual nos fala Kardec. A denominada “vida boa”, conforme nos ensina a Doutrina Espírita, é fruto de outra lógica, pautada em valores sólidos do espírito.
Tais valores, no entanto, são aqueles que cultivamos no espaço de nosso mundo interior, que é o espaço de nossos sentimentos. A cultura líquida nos induz, por sua vez, a depositar nesse espaço a preocupação constante com os valores utilitaristas e superficiais do mundo. Todavia, nos momentos de desafios pessoais, a quase ausência de valores construídos interiormente demarcará um terrível vazio psicológico e espiritual. Como enfrentar problemas, empobrecidos interiormente? A cultura líquida responderá simplesmente: “não sofra, tome antidepressivos...”. O materialismo não estabeleceu a impossibilidade do sofrimento, pelo contrário, vem colaborando para aumentá-lo.
Como, no entanto, o espiritismo vem colaborar para uma revisão cultural, considerando que usamos nesse texto o termo cultura como sinônimo de “modo de vida”? Sendo o sofrimento inerente à imperfeição humana, quanto mais imperfeito for o ser, mais sofrimento enfrentará. O sofrimento, dentro das contingências da vida, representa um mecanismo natural de estímulo, permitindo ao individuo descobrir forças e potencialidades insuspeitados que dormiam em seu íntimo. Podemos, portanto, considerar que o espiritismo amplia consideravelmente os horizontes sobre o que Bauman denominou de “A arte da vida.”
Já não se trata mais de uma vida para o consumo, pois a centralidade de nossas mais caras aspirações deve ser o Bem e o equilíbrio. À luz da reencarnação, sabemos que a dinâmica evolutiva nos convida ao crescimento interior, ao preenchimento de nossa estrutura psíquica com valores afirmativos da vida. Há uma lógica maior para estarmos aqui. Com o espiritismo afastamos o casuísmo e o determinismo, substituindo-os por nossas responsabilidades individuais diante de novas oportunidades de crescimento. Logo, o ser humano é artífice de seu próprio destino, no tempo e no espaço.
Não temos, Individualmente, força o suficiente para mudarmos a cultura materialista da sociedade, mas somos depositários do poder de fazer escolhas, de redefinir os rumos de nossas decisões. O espiritismo bem compreendido e, sobretudo, bem sentido, conduz o indivíduo para um novo patamar de reflexão sobre si mesmo, sobre a vida e, portanto, sobre a própria cultura. A realidade do espírito, sua imortalidade e pluriexistencialidade, associadas ao princípio de ação e reação, determinam um novo olhar sobre a cultura.
O mergulho para águas mais profundas, abandonando, de certa forma, a superfície da vida, para compreendê-la com mais riqueza de detalhes é a proposta filosófica espírita. O eminente professor Herculano Pires, em seu livro Introdução à filosofia espírita, salvo engano, cunhou o termo cosmosociologia espírita para melhor definir essa análise pluridimensional, física e extrafísica, da sociedade humana.
Cada vez mais, vemos pensadores humanistas retomando os valores fundamentais esquecidos pela pós-modernidade. Em seu  livro A Arte da Vida, Zygmunt Bauman afirmou:

Observadores indicam que cerca da metade dos bens cruciais para a felicidade humana não tem preço no mercado nem podem ser adquiridos em lojas. Qualquer que seja a sua condição em matéria de dinheiro, crédito, você não vai encontrar no shopping o amor, a amizade, os prazeres da vida doméstica, a satisfação que vem de cuidar dos entes queridos, ou de ajudar um vizinho em dificuldade...[1]

Essa constatação parte de um princípio humanista, realista, amadurecido pela reflexão. Robert Lane descobriu, por suas pesquisas, que apesar do espetacular crescimento da economia americana do pós-guerra, e o consequente aumento da renda dos americanos, estes haviam declarado que a sua felicidade interior não havia acompanhado essa pujança material.[2] Todavia, apesar disso, a cultura líquida e utilitarista teima em afirmar que a felicidade está no hiperconsumismo. Ou será que todo esse consumismo é uma forma do sujeito compensar o vazio interior?  Vivemos o difícil dilema entre realidade e ilusão, algo já alertado por Platão em seu famoso mito da caverna. Na questão 707 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec apresenta o seguinte comentário:

Poder-se-á dizer que já se haja chegado à perfeição? Oh! Não, certamente; mas, o que já se fez deixa prever o que, com perseverança, se logrará conseguir, se o homem se mostrar bastante avisado para procurar a sua felicidade nas coisas positivas e sérias e não em utopias que o levam a recuar em vez de fazê-lo avançar.

A palavra “utopia” (utopos= lugar nenhum) utilizada por Kardec está posta no sentido de “fantasia”, uma espécie de entorpecimento da alma para perceber o sentido das coisas positivas e sérias. A cultura líquida estimula as fantasias entorpecidas que levam muitos indivíduos a recuarem diante dos aspectos positivos e sérios da existência. Viver na ilusão é, de alguma forma, satisfazer os sentidos, os desejos e, portanto, as paixões do ego. Logo, vivemos numa sociedade onde tudo parece cada vez mais superficial e inconstante.
As hecatombes morais assinalam o desmoronamento das instituições e dos indivíduos, aparentemente, sérios e comprometidos com o bem. As representações estão ruindo, e com elas, o imperativo de uma nova cultura se torna evidente. De que cultura estamos falando? Com o aumento da qualidade de vida material, o ser humano desenvolveu uma maior consciência corporal, valorizando exercícios físicos numa crescente busca pelas academias. No fundo disso, no entanto, também está a supervalorização da imagem e os padrões de beleza estabelecidos socialmente. Sem abdicarmos dos cuidados com o corpo e com a auto-estima, convém pensarmos que somos uma realidade profunda, espiritual, que está temporariamente revestida de um corpo físico para o necessário aperfeiçoamento intelecto-moral. É dessa cultura que estamos falando!
A rigor, criar rotas de fuga dos compromissos sociais, afetivos e espirituais somente poderá contribuir para o esvaziamento do sujeito. Nesse sentido, observa Stuart Jeffries[3] que a liquidez dos relacionamentos emocionais ensejou o denominado “compromissofobia”, onde passam a ser cada vez mais comuns nas grandes metrópoles, os casamentos com “data de validade”, ou até que os cônjuges comecem a se cansar dos compromissos assumidos, minimizando a exposição aos “riscos” ou aos “espinhos” da convivência que se revelam gradualmente, ao sabor do tempo.
 O que isso representa? Colocar a transitoriedade no lugar da permanência é uma fuga, não do outro, mas de si mesmo. Todo relacionamento emocional duradouro necessita ser nutrido com base no “cuidado”, princípio fundamental da “conservação”. Mas “cuidar” exige esforço, trabalho interior de ambos os envolvidos para “domarem suas más inclinações” (impulsos). A liquidez dos compromissos sinaliza, por certo, em muitos casos, um processo imaturo, pois manter uma convivência implica o exercício regular de alguns valores ou sentimentos básicos: diálogo, renúncia, paciência, doação, respeito, entre outros.
 No conceito da cultura tradicional afirmava-se: “vivemos um para o outro”, com a modernidade líquida ficou: “vivemos para satisfação de nossas necessidades individuais”. Dessa forma, a ideia de uma vida boa tem sido definida ou relacionada, de um lado, ao exercício de uma onipotência imaginária pelo uso desenfreado da liberdade e, por outro, ao hiperconsumismo baseado na máxima: “o bastante nunca bastará”.
A cultura, no entanto, se altera conforme os imperativos do tempo, do meio e das próprias aspirações e conquistas humanas. Apesar das vulnerabilidades da cultura contemporânea, sobretudo nos aspectos já citados nesse texto, convém observarmos que os seus limites e efeitos poderão nos conduzir para novas reflexões sobre a “nossa forma de estar no mundo” ou a forma como estamos consumindo nosso tempo, nossa inteligência e, por fim, nossa saúde.
O homem do século XXI vive sua existência corporal como se ela fosse eterna e só existisse essa dimensão da vida. Essa visão materialista impregnou nossa cultura, motivando um constante gozo dos sentidos. Allan Kardec com seu trabalho meticuloso de investigação e análise, desvelou novos horizontes conceituais sobre o homem e a vida. Já não se trata de um “viver por viver”, ancorados na unicidadade da existência, fruto de uma mera fatalidade biológica. As evidências científicas trazidas pela doutrina espírita e seu profundo apelo racional, nos convidam a um olhar mais convincente e responsável no manejo da “arte da vida”.
Somos os herdeiros naturais de nós mesmos, argonautas da evolução e, portanto, artífices do nosso próprio destino, individual e coletivamente, no tempo e no espaço, na dimensão física e extrafísica. Sem imposições moralistas, o espiritismo expõe argumentos convidativos a um projeto de vida muito mais globalizante. O “estar no mundo...” é uma condição de tempo, mas: “...sem ser do mundo” implica numa relação de equilíbrio e bom senso no trato com as coisas materiais e com o prazer que elas possam nos proporcionar. Viver e conviver sob a égide do equilíbrio e moderação é um primeiro imperativo.
Mas, o Bem é o objetivo único da vida! É um preceito generalizante e, ao mesmo tempo, definidor de uma nova cultura, mais sólida e produtiva. A estética do bem é o móvel (cultural) pelo qual o ser humano se torna verdadeiramente rico, pois que essas riquezas são os bens afirmativos da vida e da paz. São desses bens que a nossa civilização esta carente.
Conspirando contra esses bens estão as denominadas paixões humanas. A questão 874 de O Livro dos Espíritos nos informa que estas alteram o sentimento natural de justiça, fazendo com que as pessoas vejam as coisas sob um prisma falso. As paixões são emoções fortes, arrebatadoras que comprometem o discernimento. Normalmente estão relacionadas a fatores diversos e delicados como: dinheiro, fama, poder, sexo, beleza, jogo, entre outros. Se observarmos minimamente a cultura líquida atual, veremos que ela trabalha exatamente com esses elementos.
Nas telenovelas, que são assistidas diariamente por milhões de pessoas, os elementos que permeiam as tramas são indutores de paixões grosseiras, que utilizam dessas emoções e pulsões que ainda mexem muito com o ser humano, justamente, para “prenderem” o espectador e gerarem ibope. Quanto maior o índice do ibope maior o número de telespectadores e, portanto, mais caro o espaço comercial dos intervalos. A cultura televisiva permeada de liquidez reforça essas estruturas mais ancestrais do espírito, ao invés de enriquecê-lo com uma programação de elevado valor sólido-cultural. Em tempos de pós-modernidade as paixões estão a serviço do “moneyteísmo”, para usarmos uma expressão do economista egípcio Samir Amin.
Allan Kardec, entretanto, indagou na questão 907 de O Livro dos Espíritos: Será substancialmente mau o princípio originário das paixões, embora esteja na Natureza? Vejamos a resposta.

Não; a paixão está no excesso de que se acresceu a vontade, visto que o princípio que lhe dá origem foi posto no homem para o bem, tanto que as paixões podem levá-lo à realização de grandes coisas. O abuso que delas se faz é que causa o mal.

A paixão na sua essência é um impulso primário e criador. O homem deve controlar as paixões, e não as paixões controlarem o homem. No primeiro caso existe uma relação de equilíbrio e bom senso no trato com essas disposições e impulso internos. No segundo, o indivíduo vive a mercê de suas pulsões e desejos infrenes. Quando as paixões desconhecem limites, com rédeas livres em total estado de excitação, o resultado quase sempre é perturbador. A cultura contemporânea explora com maestria esses elementos internos do ser humano onde o marketing, e a publicidade, tornaram-se ferramentas de sedução, muitas vezes sem regras e sem ética, a serviço do culto ao materialismo devastador.
Um dos grandes infortúnios de nossa civilização atual foi muito bem expresso pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky, em seu pioneiro estudo sobre o individualismo moderno: “Deixamos de nos reconhecer na obrigação de viver em nome de qualquer coisa que não nós mesmos.” Nesse sentido, podemos dizer que essa busca hedonista pelo prazer individual e egocêntrico tem gerado o que podermos denominar de sociedade da angústia ou da decepção. Essa constatação foi prevista por Allan Kardec no capítulo XVIII de A Gênese, item 18:

Enquanto o orgulho e o egoísmo o dominarem, o homem se servirá da sua inteligência e dos seus conhecimentos para satisfazer às suas paixões e aos seus interesses pessoais, razão por que os aplica em aperfeiçoar os meios de prejudicar os seus semelhantes e de os destruir.

 Não se trata de nenhuma apologia ao pessimismo, mas de uma análise realista sobre as condições individuais e socioculturais que caracteriza a contemporaneidade. A conquista da maturidade espiritual é o imperativo para a edificação de uma nova cultura, voltada para os sentimentos nobres e para o conhecimento que enriquece verdadeiramente as mentes e os corações. A rigor, não obstante aos estímulos sociais, essa é uma tarefa individual, que somente poderá ser lograda pelos esforços pessoais. Quando desejarmos selecionar melhor a programação que assistimos na televisão, isso – no conjunto social – reverterá como resposta aos gestores da mídia, para que o gosto mais refinado do público influencie um novo patamar de conteúdos produzidos.
A cultura fútil e líquida predominante é sustentada pelo foco do interesse da maioria, ou por um grande contingente de pessoas que se permitem absorvê-la passivamente. Nesse sentido, o jornalismo do espetáculo, parasitário das desgraças e das misérias humanas, os programas que exploram a erotização e a nudez, os esdrúxulos realits shows que exploram o olhar sobre a vida privada e a competição entre as pessoas de forma bruta e insensível, somente continuam fazendo sucesso pelo fato de encontrarem ressonância no telespectador que os assiste fielmente.
Sem o menor critério na seleção cultural que nutrem seus filhos, muitos pais tornam-se, inclusive, estimuladores desses conteúdos líquidos, enquanto outros permanecem indiferentes. O fato é que muitas crianças estão absorvendo passivamente conteúdos impróprios para elas, seja através da televisão, da música ou da internet. Tais conteúdos poderão estar alimentando, com maior ou menor impacto, o desenvolvimento de suas personalidades. O estímulo “inocente” à sensualidade ou ao consumo de hoje poderá contribuir para comportamentos desastrosos amanhã. Não se trata, obviamente, de postularmos uma educação para a alienação, mas de refletirmos sobre os valores que estão postos e o nosso papel diante deles.
A fragilidade dos papéis familiares, por outro lado, se ancoram nessa lógica individualista e competitiva em que vivemos. Cada qual preocupado somente consigo mesmo e com o seu prazer. Os reflexos disso são preocupantes e visíveis, principalmente, pelo impacto na formação psicológica, emocional, relacional e escolar dos filhos. Logo, a ruptura com a noção de compromisso/comprometimento tem gerado os chamados filhos órfãos de pais vivos. A forma, muitas vezes, que essas crianças têm de compensar essa indiferença de seus pais é, justamente, aprontando confusões, tornando-se irritadiças ou agressivas. Esses comportamentos representam o relaxamento dos laços de familia de uma sociedade permissiva e viciosa.
Por outro aspecto, os efeitos da virtualização e o aumento das redes sociais, passaram a definir os denominados relacionamentos virtuais e os namoros virtuais. A vantagem desse tipo de interação é que ela permite o encobrimento do eu sob o véu das representações ilusórias. A pessoa cria um “perfil” com o qual deseja ser conhecido. Com isso, o sujeito passa a ser, não mais uma pessoa real, mas uma idealização do real, sem precisar se preocupar com os desafios da convivência inter-humana. No caso do namoro virtual, simplesmente quando o outro não mais agradar ou atender às expectativas, no computador é possível usar uma famosa tecla denominada “delete” para por fim, sem maiores justificativas ou dissabores, ao relacionamento. Na vida real, no entanto, os processos não são tão simplistas assim, exigindo, dos sujeitos, a expressão realmente viva de suas estruturas de sentimentos, expressando-se em capacidade de diálogo, argumentos, doação, respeito, entre outros.

Notas

[1] BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. P. 12.
[2] LANE, Robert E. The Loss of Happiness in Market Democracies. New Haven, Yale University Press, 2000. Citado por Bauman, op. cit. p. 8.
[3] Citado por Bauman in. A Arte da Vida. Pág. 25-26.

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