sábado, 11 de abril de 2009

O Potencial filosófico de “O Livro dos Espíritos”

Em 2007, ano em que O Livro dos Espíritos comemorou o seu sesquicentenário, naturalmente, eclodiram significativas reflexões sobre o seu conteúdo na cultura contemporânea. Cento e cinqüenta anos podem ser enquadrados, historicamente, num tempo de curta duração, o que significa que o potencial filosófico dessa Obra, evidentemente, não esgotou o seu dinamismo essencial. Nosso propósito, com esse artigo, é refletirmos sobre o conjunto dessa Obra Primária do Espiritismo, em especial, sobre a contribuição de sua filosofia para o homem atual.
O Livro dos Espíritos é a obra fundadora da Doutrina Espírita e, portanto, do que chamamos de “filosofia espírita”. A rigor, nos meios intelectuais continua se negando o caráter filosófico dessa Obra codificada por Kardec. Gonzáles Soriano, em seu ensaio intitulado: “El Espiritismo es la Filosofia”, mesmo sem ser espírita, assevera que o Espiritismo é: “...a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicados à investigação da verdade.”[1] Ora, a longa tradição filosófica do Ocidente, buscou na razão as interpretações que se julgavam “lógicas” e “aceitáveis”, para explicar o mundo.
A filosofia, no seu nascedouro, buscou romper com a explicação mitológica da realidade, muito comum nas sociedades agrárias antigas. Embora, ainda hoje, se aceitar a definição de Pitágoras, num sentido mais etimológico, de que a filosofia signifique: “amor à sabedoria”, devemos perceber, num sentido amplo, que o que existe são “filosofias”, ou seja, concepções diferentes sobre a realidade. Nos vinte e cinco séculos de tradição filosófica Ocidental os inúmeros filósofos e suas escolas conceberam filosofias distintas e, muitas, conflitantes.
Quer se afirme que a filosofia seja: um conjunto de saberes, uma visão de mundo ou um modelo explicativo da vida, é importante lembrarmos o pensamento do filósofo Sexto Empírico, do século II-III, ao afirmar que em toda investigação temos três resultados possíveis: acreditamos ter encontrado toda a resposta; acreditamos ser impossível encontrar a resposta, ou continuamos buscando. Para ele, a filosofia deveria repousar nessa última questão, ou seja, de que o conhecimento não é algo pronto, acabado, fechado, mas, sobretudo, progressivo. Nada é sagrado, pois tudo é objeto de crítica e análise.
Allan Kardec, embora não ter sido propriamente um filósofo, teve a grandeza intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita em torno de uma “verdade única” e, filosoficamente, dogmática. Esse é um caráter intrínseco do discurso filosófico: a liberdade de pensamento, aberto à reflexão e ao progresso das idéias.
O Espiritismo, na medida em que busca explicar a realidade através da razão e da lógica, utiliza-se de um discurso filosófico. Todavia, a filosofia espírita, inaugurada em O Livro dos Espíritos, não traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos ou significados, Ao contrário, a filosofia espírita, é um saber que se justifica com base nos fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que Kardec não partiu da “crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da mediunidade, para, num segundo momento, enveredar pelos caminhos da interpretação dos fatos, com base no crivo da razão. Disso surgiu a filosofia espírita inserida, inicialmente, em O Livro dos Espíritos.
Para Marcondes: “A contribuição da filosofia tem sido, portanto, desde o seu nascimento na Grécia antiga, a interrogação, o questionamento, a pergunta. Para a filosofia não há nada que não possa ser posto em questão. Deve ser possível discutir tudo.”[2] Sob esse aspecto, O Livro dos Espíritos, em suas 1019 perguntas ou questionamentos, se afirma no discurso filosófico. Kardec indagou os espíritos sobre um universo de questões que sempre inquietaram o pensamento humano: Deus, a alma, a origem da vida, a morte, os problemas sociais e familiares, a liberdade, o sofrimento, o destino e a felicidade, entre outros. Dessa forma, a Obra Primeira da Doutrina Espírita avança, no seu modelo explicativo da vida, por onde outras filosofias se calaram, vítimas dos preconceitos ou do orgulho de seus formuladores.
Um estudo atento de O Livro dos Espíritos, evidencia a busca constante de Kardec, por explicações plausíveis, que possam atender à coerência e ao bom senso. Ele interroga os espíritos com firmeza, cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo tempo – buscando libertar-se de preconceitos e atavismos culturais de sua época, muito embora, seria ingenuidade pensar numa “neutralidade absoluta”.
Há, naturalmente, uma “busca incessante” de conhecimentos e reflexões, iniciadas em O Livro dos Espíritos e que, evidentemente, não pára com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto das Obras Básicas, um dinamismo inesgotável, uma vez que a experiência da evolução espiritual vai oportunizando, ao Ser, uma ampliação de seus horizontes intelectuais.
Portanto, uma vez estabelecida a base estrutural do conhecimento espírita, em 18 de abril de 1857, o seu núcleo passa a ser a análise do homem na condição de espírito imortal e pluriexistencial. Define-se uma ontologia integrando a filosofia espírita no conjunto da tradição filosófica dualista: pitagórica, socrática, platônica, entre outras. Mas o espiritismo vai além do dualismo filosófico, estudando o Ser numa dimensão tríplice: espírito, perispírito e corpo. A partir dessas informações, buscamos aprimorar instrumentos de investigação que nos permitam compreender ou desvendar melhor essa realidade espiritual.
As obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier, em especial as de André Luiz, ofereceram inestimáveis enfoques, descortinando, ainda mais, o conteúdo de O Livro dos Espíritos. Os estudiosos da Doutrina Espírita, utilizando-se dos recursos da hermenêutica, empenham esforços para aproximarem-se, o máximo possível, da essência dos conhecimentos transmitidos pelos espíritos à Kardec. Não se trata de caminharmos pelo território livre da “opinião”, representada nos famosos “achismos”, mas nos referimos à análise responsável, fundamentada e comprometida com a Causa.
Sendo que o conhecimento espírita é dinâmico, ele não foi dado por completo ou “acabado”, cabe ao ser humano, à luz da lei do trabalho[3], buscar compreendê-lo sem deturpá-lo. Interpretar não significa modificar os seus fundamentos. Na verdade, a “interpretação” é um esforço da inteligência por “encontrar um sentido escondido”, que não está, necessariamente, claro. Ora, em nossa condição de espíritos em evolução, não podemos depreender que já esteja tudo “claro”, em termos de entendimento sobre a vida e seus mecanismos. Logo, a capacidade de interpretação é inerente ao ser humano.
É preciso considerar, também, que O Livro dos Espíritos apresenta dois outros componentes importantes da reflexão filosófica: o diálogo e a dialética. Kardec, em todo o conjunto da Obra, dialoga com os espíritos através de inúmeros médiuns. Esse diálogo é uma relação dialética, de um conhecimento que não é uma simples “revelação” hierarquicamente estabelecida, mas que se opera pela via do debate e da discussão. A partir de uma pergunta, e de sua resposta, surgem outras perguntas e outras respostas que, ao longo do trabalho, são sistematicamente ordenadas.
Essa relação dialética se processa também no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo se distancie das leituras simplistas onde, muitas vezes, se busca afirmar o conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou, por óbvias razões, a dialogar com a fonte das informações, os espíritos, de forma racionalista sem, no entanto, perder o viés dos sentimentos. A racionalidade empregada aos estudos deve servir para que os seus conteúdos nos levem a um encantamento, no bom sentido do termo, pela vida.
Nesse momento, entramos num outro aspecto dessa reflexão que, para alguns poderia parecer óbvio e para outros nem tanto: Qual o dinamismo essencial do conteúdo de O Livro dos Espíritos? O que a sua filosofia nos oferece, além dos referenciais já conhecidos? Kardec afirmou que: “... o estudo do Espiritismo é imenso; interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é um mundo que se abre diante de nós.” [4] Sabidamente, essa Obra Primeira oferece-nos uma cosmovisão da vida e sua significação profunda na ordem do Universo, motivando, a partir disso, uma mudança, no comportamento humano.
Na Introdução de O Livro dos Espíritos, item XVII, Allan Kardec informa sobre o sentido pragmático dessa obra: “Esperamos (...) guiar os homens que desejem esclarecer-se, mostrando-lhes, nestes estudos, um fim grande e sublime: o do progresso individual e social e o de lhes indicar o caminho que conduz a esse fim.” Entretanto, Kardec advertiu: “Fora presumir demais da natureza humana supor que ela possa transformar-se de súbito, por efeito das idéias espíritas. A ação que estas exercem não é certamente idêntica, nem do mesmo grau em todos os que as professam. Mas o resultado dessa ação, qualquer que seja, ainda que extremamente fraco, representa sempre uma melhora.”[5]
Karl Marx afirmou, por volta de 1845, que: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transformá-lo.” Doze anos após, com o surgimento de O Livro dos Espíritos, temos a proposta de uma filosofia transformadora e, de certa forma, revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da existência de Deus, do Ser, do destino e da dor. Ao iniciar o seu diálogo com as entidades espirituais, Kardec parte, justamente de Deus: “Inteligência suprema e a Causa primária de todas as coisas.” Ora, esse “ponto de partida” recolocava Deus, novamente, no centro do debate filosófico, não de forma teológica, mas pela força dos argumentos.
Dessa forma, a filosofia espírita estabelece uma reconciliação entre a fé e a razão, entre a religião e a ciência. Um dos grandes problemas intelectuais do século XIX era a validade da fé. Sob essa discussão, Kardec, ao final de um interessante artigo sobre “A Religião e o Progresso”, enfatiza que: “É pela concordância da fé e da razão que diariamente tantos incrédulos são trazidos a Deus.” [6]
O codificador, ainda referindo-se ao “Espiritismo filosófico”, resume três de seus efeitos: a) desenvolver o sentimento religioso; b) desenvolver a resignação nas vicissitudes da vida; c) estimular no homem a indulgência para com os defeitos alheios. [7] Bem se percebe, por isso, que o conteúdo de O Livro dos Espíritos não se limita, simplesmente, a produzir um conjunto de reflexões teóricas ou um novo saber. Seu foco é tornar-se uma filosofia prática, capaz de contribuir para uma melhora do espírito humano, individual e coletivamente.
É compreensível que a elucidação dos problemas da existência e da vida, quer seja no âmbito individual ou social, permite ao ser humano aproximar-se melhor de uma compreensão sobre a Justiça Divina e sua Providência. O ateísmo é produto da ignorância em relação a antigas crenças sobre Deus alimentadas, ao longo do tempo, pela imaginação humana. Por isso, o Espiritismo nos convida à “fé raciocinada”, a estudarmos com maior profundidade as Leis Morais que regem e que orientam a nossa evolução espiritual.
Na medida em que passamos a compreender e a correlacionar a: Justiça Divina, a Imortalidade da alma, a reencarnação, o livre-arbítrio e a lei de ação e reação, passamos, naturalmente, a perceber com maior nitidez os mecanismos existenciais, a felicidade e os sofrimentos humanos. No centro desse processo evolutivo está o espírito, ser inteligente da criação que, no corpo ou fora dele, realiza as suas múltiplas experiências de crescimento ético-moral. Deus é amor. Ele não nos perdoa porque não se magoa, nem se melindra. A divindade não se zanga e nem sente ódio, pois esses são qualificativos humanos. Deus, na sua magnitude, nos “compreende”, oportunizando-nos o exercício pessoal da liberdade associada às Leis Morais.
Compreendendo essas estruturas da vida, o ser humano passa a enfrentar melhor, e mais conscientemente, as vicissitudes, as adversidades, percebendo nelas, de um lado, o reflexo natural daquilo que ele pode estar semeando e, de outro, os desafios evolutivos que lhe cumpre enfrentar. Compreende que esses desafios predispõem, ao indivíduo, o desenvolvimento de forças insuspeitadas, desconhecidas, que nele estavam latentes. Ao mesmo tempo, o conteúdo exarado em O Livro dos Espíritos propõe uma filosofia da convivência pautada, essencialmente, na moral cristã, sob a ótica do Amor. Logo, amar ao próximo é, também, ser indulgente com suas limitações, uma vez que todos vivemos na órbita de nossa incompletude.
Sendo a única obra da codificação totalmente ditada pelos espíritos orientadores, O Livro dos Espíritos inaugurou, sem nenhum ufanismo, uma nova fase do pensamento humano. É, sem dúvida, um novo paradigma do conhecimento, possuindo um sólido alicerce doutrinário, sem se tornar, no entanto, temporalizado, fechado, pois que acompanha o avançar das novas informações e saberes.
Portanto, O Livro dos Espíritos veio para ficar! Todo o seu potencial filosófico, como buscamos refletir até agora, enseja uma revisão do existencialismo e do materialismo. Seus argumentos são intelectualmente bem fundados, e sua essência restaura uma visão otimista da vida, situando-a no contexto da evolução ético-espiritual do homem, ser imortal e pluriexistencial, criado por Deus, para lograr a plenitude.



NOTAS
[1] Citado por Herculano Pires. Introdução à Filosofia Espírita. 2ª. ed. São Paulo: FEESP, 1993. P. 20.
[2] MARCONDES, Danilo. Para que serve a filosofia? (Prefácio) In. Café Philo: As grandes indagações da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
[3] Kardec nos oferece o seu próprio depoimento: “Eu precisei mais de um ano de trabalho para ficar convencido.” In. O Que é o Espiritismo. 32ª. ed. FEB. Cap. 1. Pág. 52. .
[4] O Livro dos Espíritos. Introdução, item XIII.
[5] Idem. Conclusão, item VII.
[6] Revista Espírita, julho 1864 (“A Religião e o progresso”)
[7] O Livro dos Espíritos. Conclusão, item VII.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Os sinuosos caminhos do regionalismo:

Muitos pesquisadores, ou mesmo escritores, se dizem “regionalistas”, defensores de uma produção literária localista. A rigor, consideram-se imbuídos da “missão” de salvaguardar os elementos identitários da região. Do ponto de vista teórico, entretanto, a discussão é muito mais ampla e exige a apreciação de múltiplas questões, normalmente, ignoradas ou simplificadas arbitrariamente. Para alguns autores o regionalismo é uma questão problemática, ainda não totalmente digerida academicamente. O problema já começa com a própria palavra. O vocábulo “regionalismo” deriva de “regional” ou “região”, todavia, no terreno das ciências sociais – e aqui não estamos discutindo um conceito meramente geográfico – a discussão se complexifica.
Há um critério levantado por Fischer, que se refere à idéia de Imperialismo, ou seja, temos um centro detentor do poder e o resto que permanece em sua órbita: o regional ou periférico. Estende-se, também, a dimensão do regionalismo ao paralelismo entre o mundo urbano e sua cultura e o mundo rural, questão interposta, no Ocidente, a partir do Renascimento (Séc. XV-XVI). É o período de transição do mundo feudal para o mundo burguês, do medievo para a modernidade. No processo de constituição da nacionalidade brasileira, o romantismo desempenhou papel intelectual relevante, considerando a vastidão do território nacional, predominantemente rural, e a figura do índio ou nativo. Pensava-se nas distantes Províncias como o caso do Pará, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul, e suas “singularidades” no extenso Brasil.
Conforme Fischer, com esse sentido localista passou-se a nutri, no interior dessas mesmas Províncias, um sentimento ressentido e, mesmo, separatista, no propósito de singularizar a “parte” do “todo”. Flávio Loureiro Chaves concorda que o regionalismo, no Rio Grande do Sul, se originou e evoluiu a partir de uma tradição romântica, numa perspectiva de documentar o espaço local e seu cenário típico, do folclore e dos falares regionais no universo ficcional. Essa ideologia do regionalismo, no entanto, quase sempre corre o risco do excesso de idealização, um acentuado realismo, por vezes demarcando uma zona de conflito entre o real e o imaginário.
O regionalismo rio-grandense se corporificou associado, também, a um ideário de tradição. Dê que tradição estamos falando? Sabemos que sociedades tradicionais se constituem através de processos históricos de longa duração, e mantém-se em situações de difícil mutabilidade. Nesse sentido, os papéis sociais e culturais são milenarmente estabelecidos, de tal forma que as novas gerações sentem-se a eles plenamente pertencentes. O regionalismo idealizado pelo romantismo brasileiro configura uma “tradição” ficcional e lúdica. No Rio Grande do Sul do século XIX, não tínhamos uma sociedade tradicional, mas conservadora.
Em sua sinuosidade, pode-se pensar o regionalismo como uma forma de dissociar o particular do universal. Para Chaves, o regionalista entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence. Portanto, o regionalismo é uma forma de isolamento, forma um tanto ingênua, de separar a parte do todo, de fragmentação da realidade sob a égide de uma identidade arquetípica, talvez melhor explicada por Jung.
Conceituar uma obra ou autor de “regionalista” já se trata de impor um “limite” complexo para o universo da arte que, conforme Aristóteles em sua Poética: é o “espaço da possibilidade”. Considerar esse ou aquele escritor um regionalista é, por certo, ter um olhar simplificador sobre sua obra. A complexidade em se tratar o regionalismo na literatura é se pensar que, apesar de certos escritores construírem seus enredos abarcando espaços geográficos e culturais delimitados, o núcleo abordado termina enfatizando questões universais. O folclore é universal! O sofrimento, o amor, a opressão social, os conflitos familiares, os encontros e desencontros amorosos, as misérias, não estão em toda parte?
O romance A Viuvinha, de José de Alencar, por exemplo, narra a história de Jorge, filho de um negociante rico que falecera, e que foi criado por velho amigo de seu pai. Quando chega à maioridade, e passando a tomar conta de seu patrimônio, Jorge descobre os prazeres que o dinheiro pode proporcionar e entrega-se aos seus desejos e vaidades. Mas a busca desenfreada e delirante do gozo o faz sentir um vácuo e, surge o tédio. Com o tédio, a solidão. Percebendo que a felicidade não estava no delírio do prazer, Jorge busca num templo religioso aquele “algo mais” que representa os anseios mais profundos do ser humano. Mas a vida é curiosa! Nesse templo, o personagem de Alencar conhece uma jovem, de 15 anos – Carolina – por quem se apaixona perdidamente. Pouco tempo depois, já estavam com o casamento marcado e, ambos, com os corações enternecidos, almejavam o sonho de toda a humanidade: a felicidade.
Mas a felicidade inconstante, na trama de A Viuvinha, não se distancia muito da vida real. O que ocorre é que o desfecho literário buscou, na maioria das vezes, sintetizar as aspirações humanas por um “final feliz”. Não raro, a questão da felicidade está associada, no texto ficcional, a um amor romântico que, a cada nova cena, se vê cercado de crises e obstáculos, distanciando os protagonistas, e por extensão o próprio leitor, de seu ideal de plenitude e realização que deve ser atingido somente nas últimas páginas do livro.
Percebe-se a universalidade do texto literário, justamente por ele enfocar questões essenciais para o ser humano independentemente do tempo, da cultura, e do espaço. Em Olhai os lírios do campo, Eugenio, personagem central do romance de Érico Veríssimo, caminhando em uma madrugada pelas ruas desertas, passa em revista sua vida e, diante dos problemas enfrentados, indaga-se se um dia chegaria a encontrar a paz interior, tão almejada. Relendo as cartas de Olívia, sua antiga amiga e depois amante, Eugenio começa a vislumbrar, nelas, um rico manancial de ensinamentos. Eugenio é de família pobre vivendo no período de 1914/1930, período da República Velha. O romance discute, também, os conflitos sociais da época, conduzindo o leitor, de alguma forma, a pensar sobre essas questões no presente.
Em O Continente temos uma natureza dinâmica e simbólica, expressa num elemento permanente: o vento. Para Donaldo Schüler, (Apud. SURO, p. 148-149), o ato de “soprar” evoca o passado, e essa relação do leitor com o tempo, é trabalhado em planos narrativos diferentes: o passado recente, que vai desde a madrugada do dia 25 de junho de 1895, até a manhã do dia 27 do mesmo mês; e o passado remoto, que começa em abril de 1745 até 1895, perfazendo um período de 150 anos. Segundo alguns estudiosos, O Continente expressa uma teoria cíclica da história. Para Suro, no entanto: “O que acontece é que esse tempo histórico é regido por uma estrutura cíclico-mítica, baseada na natureza, que faz com que se repetem basicamente os mesmos processos históricos de geração em geração.” (Idem, p. 149)
Ora, essa é uma questão determinante para pensarmos a fragilidade do conceito de “regionalismo” na literatura, fundado numa concepção restrita de isolamento ou de fragmentação entre o específico e o geral. Entendemos que a literatura, por mais que trabalhe com questões localizadas, estará sempre, como uma espécie de fio-condutor, discutindo questões pertinentes ao universo humano e, nesse sentido, qualquer rótulo é impor-lhe um limite desnecessário.

Bibliografia

CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
CHAVES, Flávio Loureiro. Érico Veríssimo: Realismo & Sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura Brasileira. Modos de usar. Porto Alegre: L&PM (Coleção L&PM Pocket), 2008.
SURO, Joaquim Rodriguez. Érico Veríssimo: História e Literatura. Porto Alegre: DC Luzatto Editores Ltda, 1985.

Fronteiras entre o Real e o Imaginário:

A produção literária, desde a Grécia Antiga, vem moldando seus enredos e suas tramas utilizando-se de contextos e fatos históricos. Os romances épicos, que em muitos casos terminam virando, contemporaneamente, filmes ou novelas de grandes sucessos, exploram os aspectos de época, muitas vezes, adicionando elementos mentais e culturais de nosso tempo. Essa é uma questão perigosa, pois pode gerar os famosos anacronismos históricos. Seria algo como um romance que se passa no Egito, na época de um faraó qualquer, falar em “burguesia egípcia”. Ora, “burguesia” é um conceito que começa a ser construído por volta dos séculos XII-XIII, no Ocidente Medieval. Portanto, romances onde conceitos ou idéias são usados fora de seu contexto histórico, tornam-se anacrônicos.
Todavia, a literatura propõe-se, nesses casos, a uma reinterpretação lúdica da História. Se, por um lado isso agrada ou atinge os leitores, por outro, desagrada os historiadores que vêem em tal postura, uma deturpação da memória histórica, ou seja, a subjetividade do escritor reescrevendo, idilicamente a História. Tal problema é pertinente, a nível teórico, talvez porque seja essa a representação que permanecerá não somente na memória individual do leitor, mas na própria memória coletiva das gerações.
Assim sendo, o texto literário resguarda em suas entranhas uma boa dose de “perversidade”, isto é, uma intencionalidade nem sempre clara, um componente ideológico que, independente do que pensa o autor, ganha vida própria na mente de cada novo leitor. Bakhtin[1] assevera que “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.” Logo, a Literatura, assim como a História, têm o poder de criar representações coletivas, forjando tradições, mitos e identidades.
Ocorre que, a partir, principalmente da segunda metade do século XX, a História passou a valorizar a produção literária enquanto fonte para a pesquisa historiográfica. A problematização do texto ficcional permite ao historiador um descortinar de novos referenciais, em seu modelo de análise. Sabemos[2] que a narrativa ficcional, ao alcançar nível artístico elevado, pode torna-se valiosa fonte documental, quando expressa os cenários, a linguagem, as concepções e visões de mundo, as relações de dominação de classes, etc.
Depreende-se que o “diálogo” entre História e Literatura se torna uma via possível de estudos de fronteiras. Em que pese essa constatação, do ponto de vista de sua função, o papel do historiador não é fazer Literatura. A tendência de historiadores utilizarem-se da produção literária, ao longo e, mais intensamente no final do século XX, para a produção do conhecimento histórico, abriu um leque de questionamentos no que, para alguns, seria a transformação da História (enquanto área do conhecimento científico) em uma espécie de expressão da própria Literatura. Nesse sentido, Chartier[3] foi incisivo ao afirmar: ”o historiador não faz literatura”, pois o ofício de historiador, para ele, possui “operações específicas” que podem ser relacionadas na seguinte dinâmica metodológica: construção e tratamento de dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto.
A seu turno, a Literatura não é somente um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e, sob esse aspecto, possui imensa organicidade de registros da experiência humana. A obra literária, portanto, dialogando com os diversos contextos sócio-culturais, permite ao historiador uma leitura problematizada, permeada de possibilidades para um “algo mais” em termos de análise da construção dos discursos e representações sobre o passado.
Logo, em cada época, as representações[4], através dos elementos discursivos, tratam de concretizar o desejado, o vivido e o não-vivido, os sonhos e aspirações: o bom cidadão, a mulher ideal, o valente guerreiro. A Literatura, nesse particular, é enfática, como apresentou Aristóteles na Poética: “[...] se apreende que o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade.”

Notas

[1] BAKHTIN, Michail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 95
[2] MAESTRI, Mário. Deus é Grande o Mato é maior. História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no RS. Passo Fundo: UPF, 2002. p.131.
[3] CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, n. 13, Jan/Jun. 1994. p. 110-112.
[4] Entendemos por “representação” as práticas e os sistemas simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos.

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