quarta-feira, 8 de abril de 2009

Fronteiras entre o Real e o Imaginário:

A produção literária, desde a Grécia Antiga, vem moldando seus enredos e suas tramas utilizando-se de contextos e fatos históricos. Os romances épicos, que em muitos casos terminam virando, contemporaneamente, filmes ou novelas de grandes sucessos, exploram os aspectos de época, muitas vezes, adicionando elementos mentais e culturais de nosso tempo. Essa é uma questão perigosa, pois pode gerar os famosos anacronismos históricos. Seria algo como um romance que se passa no Egito, na época de um faraó qualquer, falar em “burguesia egípcia”. Ora, “burguesia” é um conceito que começa a ser construído por volta dos séculos XII-XIII, no Ocidente Medieval. Portanto, romances onde conceitos ou idéias são usados fora de seu contexto histórico, tornam-se anacrônicos.
Todavia, a literatura propõe-se, nesses casos, a uma reinterpretação lúdica da História. Se, por um lado isso agrada ou atinge os leitores, por outro, desagrada os historiadores que vêem em tal postura, uma deturpação da memória histórica, ou seja, a subjetividade do escritor reescrevendo, idilicamente a História. Tal problema é pertinente, a nível teórico, talvez porque seja essa a representação que permanecerá não somente na memória individual do leitor, mas na própria memória coletiva das gerações.
Assim sendo, o texto literário resguarda em suas entranhas uma boa dose de “perversidade”, isto é, uma intencionalidade nem sempre clara, um componente ideológico que, independente do que pensa o autor, ganha vida própria na mente de cada novo leitor. Bakhtin[1] assevera que “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial.” Logo, a Literatura, assim como a História, têm o poder de criar representações coletivas, forjando tradições, mitos e identidades.
Ocorre que, a partir, principalmente da segunda metade do século XX, a História passou a valorizar a produção literária enquanto fonte para a pesquisa historiográfica. A problematização do texto ficcional permite ao historiador um descortinar de novos referenciais, em seu modelo de análise. Sabemos[2] que a narrativa ficcional, ao alcançar nível artístico elevado, pode torna-se valiosa fonte documental, quando expressa os cenários, a linguagem, as concepções e visões de mundo, as relações de dominação de classes, etc.
Depreende-se que o “diálogo” entre História e Literatura se torna uma via possível de estudos de fronteiras. Em que pese essa constatação, do ponto de vista de sua função, o papel do historiador não é fazer Literatura. A tendência de historiadores utilizarem-se da produção literária, ao longo e, mais intensamente no final do século XX, para a produção do conhecimento histórico, abriu um leque de questionamentos no que, para alguns, seria a transformação da História (enquanto área do conhecimento científico) em uma espécie de expressão da própria Literatura. Nesse sentido, Chartier[3] foi incisivo ao afirmar: ”o historiador não faz literatura”, pois o ofício de historiador, para ele, possui “operações específicas” que podem ser relacionadas na seguinte dinâmica metodológica: construção e tratamento de dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto.
A seu turno, a Literatura não é somente um fenômeno estético, mas também uma manifestação cultural e, sob esse aspecto, possui imensa organicidade de registros da experiência humana. A obra literária, portanto, dialogando com os diversos contextos sócio-culturais, permite ao historiador uma leitura problematizada, permeada de possibilidades para um “algo mais” em termos de análise da construção dos discursos e representações sobre o passado.
Logo, em cada época, as representações[4], através dos elementos discursivos, tratam de concretizar o desejado, o vivido e o não-vivido, os sonhos e aspirações: o bom cidadão, a mulher ideal, o valente guerreiro. A Literatura, nesse particular, é enfática, como apresentou Aristóteles na Poética: “[...] se apreende que o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade.”

Notas

[1] BAKHTIN, Michail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 95
[2] MAESTRI, Mário. Deus é Grande o Mato é maior. História, trabalho e resistência dos trabalhadores escravizados no RS. Passo Fundo: UPF, 2002. p.131.
[3] CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, n. 13, Jan/Jun. 1994. p. 110-112.
[4] Entendemos por “representação” as práticas e os sistemas simbólicos por meios dos quais os significados são produzidos.

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