sábado, 5 de fevereiro de 2011

O ESTADO DE NATUREZA


“O moral e a inteligência são duas forças que só com o tempo chegam a equilibrar-se.”
O Livro dos Espíritos. Questão 780 b

Preâmbulo

Nos séculos XVII e XVIII floresceu na Europa diversas teorias explicativas sobre a origem da desigualdade social  entre os homens. Destacaram-se especialmente os pensamentos de Hobbes e Rousseau. Numa tentativa de explicar o problema do surgimento da sociedade civil, desenvolvem o conceito do Estado de Natureza. A concepção filosófica de cada autor irá variar, como veremos, sobre o modo de vivência  do homem nesse estado inicial. Interessa-nos, no entanto, além de examiná-las genericamente, estabelecer as interfaces com a teoria espírita.
A  denominação “estado de natureza” parte da concepção filosófica européia. Assim, quando Allan Kardec aborda essa questão em O Livro dos Espíritos,  apresenta, na verdade, um modelo explicativo espírita sobre o assunto, numa abordagem multidimensional da realidade humana.

1-Um constante estado de insegurança

A forma como os seres humanos viviam, em comunidades iniciais, antes da formação do Estado ou da sociedade civil organizada, é denominada estado de natureza. Esse estágio, caracterizava-se, segundo  Hobbes, pela insegurança da vida humana, pois vigia a lei do mais forte. Nesse período, todos eram  livres de padrões sociais. Os conflitos pela posse, no entanto, geravam um constante estado de guerra.
Conforme pensa  Thomas Hobbes, no estado de natureza o homem vivia impulsionado por uma ferocidade instintiva, impeditiva da convivência pacífica, pois, segundo ele: “o homem é lobo do  próprio homem “. Hobbes  parte do princípio que o homem não é naturalmente sociável, pois cada ser humano alimenta em si a ambição do poder e a tendência para o domínio sobre os outros homens.
Para romper com esse estado caótico,  as pessoas obrigadas pela insegurança da própria vida e pelo receio de perderem suas propriedades  resolvem fazer um “contrato” ou um “pacto social” no qual abdicam de sua liberdade em favor da própria sobrevivência.  Delegam  os seus direitos a um homem – soberano – ou  a uma assembléia de homens que personifica a sociedade e que assume o encargo de conter esse estado de insegurança.   Locke afirma ainda, que esse contrato é feito  visando a manutenção dos direitos naturais do homem, quais sejam: direito à vida, direito à propriedade privada e direito de liberdade. Hoje, esses direitos são conhecidos por “direitos humanos”.
Mas, ainda conforme o pensamento de Hobbes, os homens se associaram não por gostarem de viver em sociedade, mas por interesse e necessidade. O Estado, assim, surge para conter a “fúria natural dos indivíduos”.
À luz da teoria espírita, a vida em sociedade é princípio natural e necessário. Concordamos com o escritor Silvino José Fritzen quando afirma que: “as convivências são formativas: ajudam a reflexão e a interiorização pessoal, e representam uma rejeição viva à sociedade egoísta”. A vida social desenvolve os sentimentos e o intelecto humano, predispondo-nos ao trabalho de intercambiar experiências com vistas ao melhoramento do grupo onde nos encontramos. Assim, ampliam-se os horizontes da arte, da cultura, da ciência, da religião, da tecnologia, etc.
Depreende-se, portanto, que o estágio da convivência social é, para o espírito humano, a superação do isolamento vivencial e existencial das faixas iniciais da evolução.

2-Instintos, sensações, felicidade...

No seu ponto de partida, a filosofia de Rousseau é diametralmente oposta à de Hobbes.  Para Rousseau o Estado de Natureza não era o estado da barbárie ou do caos, mas da felicidade.  O homem no estado de natureza é sadio, ágil e robusto. Os únicos bens que conhece são os alimentos, a mulher e o repouso. Os únicos males que teme são a dor e a fome. Mas o homem adquire – para sua felicidade no início e para sua “desgraça” mais tarde - duas    virtudes que o diferenciam dos animais e que irão modificar o seu estado primitivo: a faculdade de aquiescer ou resistir, isto é, a possibilidade de reconhecer-se livre, e a faculdade de aperfeiçoar-se. Essas duas capacidades auxiliadas pelas múltiplas experiências do cotidiano, desenvolveram a inteligência, a linguagem, e todas as outras faculdades que estavam em potencial na criatura humana.
Em seu “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” publicado em 1755, Rousseau afirma que o primeiro sentimento do homem foi o da sua existência; o primeiro cuidado, o da sua conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os auxílios necessários; o instinto o levou a servir-se deles . A forme e outros apetites fizeram-no experimentar, alternadamente, diversas maneiras de existir, e houve um desejo que o convidou a perpetuar a espécie.
Tal foi a condição do homem no começo. Vivendo no limite das sensações o homem aproveitava as possibilidades que a natureza lhe oferecia.  Todavia, cedo se apresentaram dificuldades e foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência com os animais que dele buscavam nutrir-se, as forças telúricas e os fatores mesológicos inóspitos. Tudo isso o obrigava a exercitar o corpo e o intelecto. Foi necessário fazer-se ágil, rápido na corrida, vigoroso no combate. As armas naturais – as pedras e os ramos de árvores – cedo se acharam em suas mãos.  Ele aprendeu a sobrepujar os obstáculos da Natureza, a combater por necessidade os outros animais, a disputar a subsistência com os próprios semelhantes ou se compensar quando era forçado a ceder ao poder do mais forte.
No modelo  hobbesiano a luta competitiva é a norma, pois no estado de natureza,  predomina a “guerra de todos contra todos”. Rousseau, todavia, compreende que “o homem é pacífico por natureza”, isto é,  Rousseau não aceita a tese do pecado original, que marcaria todo aquele que nasce; o mal não é do homem enquanto natureza, como, de certa forma entendia Hobbes.
O espiritismo não parte desses modelos dicotômicos, mas apresenta um modelo explicativo da evolução onde afirma que o espírito humano, em seu início, é “simples e ignorante”, isto é, não possui conhecimento nem do bem nem do mal. Todavia, a criatura humana possui, em estado potencial, as sementes das perfectibilidades que lhe cumpre atingir.
Concorda, que no início de sua trajetória no reino hominal, o espírito humano ainda muito incipiente, experenciava  as possibilidades dos instintos e das sensações que o dominavam, visando atender as necessidades mais imediatas da vida. É a fase da Anomia, isto é, da ausência de normas. A criatura humana encontra-se numa fase pré-moral, onde o homem vive em bandos,  sem a existência de uma organização social mais complexa.
Abordando a questão diz Allan Kardec:   “O  estado de natureza é a infância da Humanidade e o  ponto de partida do seu desenvolvimento intelectual e moral”.  [O Livro dos Espíritos. Comentário, questão 776].  O conceito é semelhante ao de Rousseau: “...tal estado é a verdadeira juventude do mundo...”.[5]
A ideia de Rousseau sobre a questão da felicidade no estado de natureza, suscitou, por certo, a questão 777 de O Livro dos Espíritos. Vejamos:  Kardec indaga os espíritos sobre o “(...)que se deve pensar da opinião dos que consideram aquele estado como o da mais perfeita felicidade na Terra?”  A resposta é incisiva:  “(...) É a felicidade do bruto. Há pessoas que não compreendem outra.”   A ideia de felicidade, nesse contexto, prende-se rigorosamente, a ideia de subsistência. É um tipo de felicidade circunscrita, em nossa concepção atual, exclusivamente a satisfação de suas necessidades fisiológicas. Somente com o passar do tempo, o ser humano vai forjando relações de vida mais complexas, de onde faz surgir novas necessidades-desafios e, portanto, novas formas de felicidade-infelicidade.


4-A Metacivilização

As teorias de Hobbes e Rousseau sobre o Estado de Natureza analisam o homem a partir de pressupostos teóricos, onde a criatura humana está circunscrita a uma única existência material. O espiritismo, todavia,  propõe uma abordagem  multidimensional da questão. O homem é um ser imortal e, pelas sucessivas experiências palingenéticas ou reencarnatórias, frente aos desafios impostos pela natureza, vai imprimindo novas culturas e saberes. Forjando novas formas de viver e conviver com o outro.
Desse complexo processo interativo, que não ocorre somente no plano físico mas igualmente, na dimensão extrafísica ou espiritual, o espírito humano vai aperfeiçoando-se na universidade da vida, para compreender os seus mecanismos constitutivos. Daí, a transição do Estado de Natureza para o Estado de Civilização e, dessa, para uma  metacivilização, isto é, a civilização do senso moral: da justiça, do amor e da caridade. A denominada Metacivilização será o estágio onde a sociedade humana passará a articular o valor-intelecto com o valor-sentimento, proporcionando, com isso, o equilíbrio entre os valores espirituais e os valores materiais, numa dinâmica de vida muito mais satisfatória e positiva.


Referências Bibliográficas

1-KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Questões: 776,777,780. 68ª ed. Brasília, Feb, 1987.

2- ____. O Evangelho Segundo o Espiritismo.  Cap. 3, item 3 e 4. 100ª ed. Brasília, Feb, 1989.

3- ____.  A Gênese. Cap. Item 10. 34ª ed. Brasília. Feb. 1991.

4-PIRES, J. Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. Cap. 7, 2ª ed. São Paulo, Feesp, 1993.

5-ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social e outros escritos. 4ª ed. São Paulo. Cultrix.

6-MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 22ª ed. São Paulo, Saraiva.

7-LARA, Tiago Adão. A Filosofia Ocidental do Renascimento aos Nossos Dias. 6ª ed. Petrópolis, Vozes.

8-ANDRÉIA, Jorge. Nos Alicerces do Inconsciente.3ª ed. Brasília, Edicel.


domingo, 30 de janeiro de 2011

O DESCONFORTO HUMANO

A desagregação das instituições, aparente ou não, tem conduzido a valiosas reflexões sobre a necessidade de construirmos bases mais sólidas de valores, para obtermos uma sociedade mais feliz. As paixões debilitaram as sociedades, aparentemente, dominadas, por um lado, pela ânsia do consumo e, por outro, pela imensa desigualdade social, aumentando o fosso entre ricos e pobres. Assim, o desenvolvimento tecnológico coexiste com o subdesenvolvimento moral. Para o espiritismo, vivemos ainda a predominância da natureza animal, instintiva, sobre a natureza espiritual, do racionalismo e dos sentimentos nobres.  
  Atualmente, vivemos um modelo de vida centrado, não na pessoa, mas na economia. Tudo gira, em discursos e em práticas, na defesa do equilíbrio econômico. Por esses tempos, ouvimos coisas estranhas do tipo: “o mercado acordou nervoso”, como se estivéssemos falando de uma pessoa. A ditadura da economia foi bem definida pelo economista egípcio, Samir Amim, como um “money-teísmo”.  Com a cultura do “tempo é dinheiro,” passamos a permitir com que o vírus da ansiedade tomasse conta de nossas mentes e emoções.  A felicidade, individual e coletiva, deixou de depender de nós mesmo, para se subordinar às condições da economia e do mercado.
 Na medida em que as paixões humanas triunfam sobre a razão e os sentimentos nobres, criamos, em nível de humanidade, novas situações que debilitam a nossa vida. A busca do consumo excessivo, sem freios, através da ditadura da publicidade e das imagens apelativas, criou uma cultura que fixa, por demais, o homem no mundo dos sentidos materiais e, com isso, nossa vida passou a depender das “coisas externas”. Para Touraine: “Somos atraídos, dirigidos, manipulados pelas forças que dominam a sociedade, ainda mais do que pelas elites dirigentes da própria sociedade.” [1]
A sociedade humana, de forma geral, vive, por um lado, a sedução do consumo e, por outro, a insegurança e o medo da perda. Essa evocação ao “ter” envolve sem piedade as mentes juvenis, tornando o jovem uma presa fácil da ansiedade da posse. Muitos jovens cresceram ouvindo e vivenciando a idéia de que a felicidade pode ser comprada. O amadurecimento psicológico deve, todavia, instrumentalizar o ser humano para resistir aos apelos transloucados da sociedade utilitarista contemporânea. Surge, daí, a grande responsabilidade dos pais, em proporcionar aos jovens uma base de valores apoiados numa cultura humanista e espiritualista, que evidencie a insensatez das concepções do materialismo. Em novembro de 2002, o Brasil parou diante do caso Richtofhen. Seria mais um lamentável ato de violência ocorrido em São Paulo, não fosse a descoberta de que a própria filha do casal, Susane, havia com seu namorado e o irmão dele, planejado o assassinato dos próprios pais. O julgamento dos três, em 2006, atraiu uma multidão de pessoas!
A população acompanhou o desfecho do caso e as sentenças dos réus com extremo interesse. Poderíamos indagar, o porquê de esse caso ter gerado tanta repercussão? Naturalmente, esse fato, além de ter evidenciado um profundo drama familiar, trouxe a baila, mais uma vez, a tão discutida questão dos valores. A filha, ao que se sabe, teria planejado o assassinato dos pais não somente por “amor” ao namorado, mas, também, pelo de desejo obter mais rapidamente a sua “herança material”.
O caso Richtofhen expôs, e por isso a sua grande repercussão, a fragilidade dos laços e dos valores vivenciados e ensinados no seio do núcleo familiar. A educação moral e religiosa, muitas vezes esquecida ou desconsiderada, no mundo contemporâneo, necessita ser resgatada urgentemente, se assim desejarmos formar pessoas de bem.  O ocorrido com essa família em São Paulo, tornou claro onde a imaturidade espiritual das criaturas pode chegar, ou seja, ao nível de uma filha valorizar mais a riqueza dos pais, do que a vida dos próprios pais. Isso choca! Isso nos faz repensar valores!
Na onda da modernidade nos chocamos com a crise geral de autoridade envolvendo os diversos setores da sociedade humana. Os pais experimentam os dilemas e os reflexos pela negligência da autoridade, no trato com a questão educacional e comportamental de seus filhos. Primeiro, porque a questão da autoridade está intimamente relacionada com os exemplos que os pais oferecem aos filhos no cotidiano da vida relacional. E, segundo, porque ter autoridade sobre os filhos dá trabalho, exige acompanhamento, dedicação, diálogo, posturas claras e firmes, afeto, etc. E, como vivemos numa cultura do “menor esforço”, os pais terminam por se tornar permissivos, alegando que não desejam ser autoritários.
A crise da autoridade, dessa forma, se espalha avassaladora para as demais instituições. No âmbito da política, aqueles que recebem um mandato popular para promoverem o desenvolvimento social, vêem-se, a todo instante, cercados de escândalos no mar da corrupção. Tal problema termina gerando no seio das instituições, e na mente das pessoas, o sentimento de libertinagem, desconfiança e impunidade. Os reflexos disso colaboram para que a insegurança se multiplique, tornando o “mundo humano” um espaço em conflito permanente.



Nota

[1] TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma. Para compreender o mundo de hoje. Trad. Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.p. 123.

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