sábado, 3 de março de 2012

A FIGUEIRA SECA E O RETORNO AO "SÓLIDO"


Jerri Almeida

No estudo da história se diz que as mudanças mentais e, portanto, culturais ocorrem em tempos históricos de longa duração. O contexto histórico-espiritual da Terra – permeado de insidiosos dilemas e conflitos, sofrimentos físicos e morais – exige renovação. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pelo universo das questões que abrange, o espiritismo está apto a instrumentalizar o processo de melhoramento humano, nesses dias tormentosos de desvarios dos sentimentos, de aturdimentos morais e de consciências que irrompem na multidão.[1] O apelo moralizador é fruto de uma convicção estruturada numa “amplitude de vistas” que transcende o reducionismo biológico, desvelando novos horizontes para o espírito humano. Urge repensarmos nossa forma de viver, por vezes, absorvida em pensamentos egoístas que nos distanciam da solidariedade e da fraternidade.
Necessitamos aclimatar nossos pensamentos e corações aos valores imperecíveis da alma como fundamento de uma nova cultura da solidez, dos princípios verdadeiramente nobres, geradores de bem estar emocional, saúde e espiritualidade, além de projetarem no convívio familiar e social uma nova dinâmica, muito mais produtiva e feliz. Vivemos um magno período de “eleição dos valores”. As condutas mentais viciosas exigem imperiosa revisão por parte de todos nós, que transitamos no planeta em transição. Tudo isso exige determinação, vigilância e perseverança pelos caminhos do equilíbrio constante, sem abandonarmos o serviço de autodoação na seara do bem incondicional.
A superficialidade de uma vida voltada para alimentar o estômago e o sexo, onde os sujeitos consomem suas energias físicas na busca de um prazer fugaz, determina estados comuns em nossa sociedade, de vazio interior e melancolia. Estamos chegando a um limite desse quadro de inobservância às Leis da Vida. A destruição da natureza, o desconcerto social, a agressividade ignóbil, o desrespeito com a vida, a cultura do superficial, o hiperconsumismo, a sexologia desvairada, irrompem num complexo estado de revisão civilizacional.
A mensagem renovadora do Cristo, ignorada ou deturpada, continua viva em seu chamamento ao Novo Homem. Essa mensagem é a base para constituirmos uma nova relação com a vida e com o semelhante. Revivida pelo espiritismo na atualidade, a Boa Nova é roteiro sólido para um ser humano mais sociável e fraterno, que exercita o desapego das coisas, pois compreende a transitoriedade delas, aceitando que sua passagem pelo corpo é oportunidade inalienável de crescimento e aprendizado pessoal.
Conforme informações recentes do espírito Manoel Philomeno de Miranda[2] a Terra, conforme planejamento da espiritualidade superior sob a égide do Cristo, vive um processo mais intenso de renovação espiritual e que, naturalmente, se prolongará por um bom tempo até que os propósitos maiores sejam atingidos. Intensificam-se a reencarnação em massa de espíritos de alta estirpe moral e intelectual, portadores de sólidos valores que, voluntariamente, candidataram-se à tarefa nobilitante de colaborar com a renovação mental e cultural da sociedade terrena.
Todavia, cada um de nós deve ser um protagonista dedicado, nesse cenário de renovação. O momento é de escolhas! Não devemos, sob nenhum aspecto, ficar refém dessa cultura do superficial que toma conta das multidões. Essa consciência de mudança tem feito parte, inclusive, do pensamento sociológico recente:

Mas [você] também deve acreditar que esse mundo poderia ser transformado num outro, mais pacífico, hospitaleiro e amigável aos homens – e também acreditar que se você tentar, como deve tentar, pode se tornar parte da força capaz de e destinada a fazer essa transformação.[3]

Essa transformação cultural e mental, ínsita no Evangelho do Cristo, é o imperativo da Era Nova que se instala na Terra. No livro Transição Planetária, Manoel Philomeno de Miranda afirma: “Ainda é um grande desafio a ação do bem no mundo tumultuado da atualidade. Nem por isso, devem desanimar aqueles que se dedicam à prática da caridade a e ao exercício do benfazer, porquanto, se existem os carrascos do além, sempre dispostos ao crime hediondo, também pululam os anjos tutelares, vigilantes e rápidos, na execução da legítima fraternidade.”[4] O mentor espiritual Dr. Artêmio Guimarães em mensagem final, na referida obra, esclareceu: “Os trabalhadores da grande transformação encontram-se, há algum tempo, operando diligentes nos mais variados segmentos sociais e culturais da Terra.”[5]  O “reino da razão” não resolveu os grandes dilemas existenciais, psicológicos e emocionais da criatura humana. O hedonismo corroeu-nos a alma e nos aprisionou nas grades da ilusão.
Nesse quadro de transformações, o Movimento Espírita é chamado a dar o testemunho impostergável da fraternidade autêntica, da caridade produtiva, da solidariedade que contagia, do perdão que liberta, do trabalho que enriquece o coração, do amor que enternece a alma e a ilumina. A hora é chegada! O servidor do Bem, amadurecido pelas experiências e esclarecido pelo Consolador, encontrará inestimáveis oportunidades, nesses dias de lutas, para se manter vigilante aos compromissos assumidos com o Cristo. Os “adeptos sinceros” referidos por Allan Kardec são todos aqueles que sacrificam o seu temperamento orgulhoso, a inflação do ego, para se manterem fiéis aos ensinamentos da Veneranda Doutrina Espírita, consubstanciados na diretriz kardequiana. Nas Instituições Espíritas, onde esses preceitos são observados, onde os servidores do Cristo são movidos pelo ideal renovador, empenhando esforços para serem a cada dia um pouco melhor do que foram no dia anterior, certamente os mentores espirituais encontram fortes aliados para o imperativo trabalho de transformação da sociedade terrestre.
Uma cultura sólida refletirá num reordenamento substancial da hierarquia dos valores, elegendo o Amor (Ágape) como a mais expressiva forma de conduta para a plenitude possível do ser humano, em seus diversos campos de ação. Uma programação televisiva de alto valor cultural repercutirá na formação intelecto-moral dos indivíduos. Da mesma forma, em todos os setores da vida humana onde os valores sólidos do Amor e da Imortalidade da alma se instalarem, o perfume da espiritualidade dignificará as criaturas. Uma nova sociedade, portanto, está emergindo com base na inexorável Lei do Progresso.
Diante dos labores que precisamos percorrer para a edificação de um novo horizonte cultural, é importante agregarmos o célebre pensamento de Aristóteles, em sua Poética, quando afirma que “a arte é o espaço da possibilidade.” A rigor, em todo processo de transformação é necessário identificarmos nossos limites e possibilidades. Os limites nos permitem perceber que não temos o poder da onipotência. Há coisas que dependem diretamente de nós e aquelas sobre as quais não possuímos controle. Por exemplo, não temos o poder de mudar, sobretudo conforme o nosso desejo, outra pessoa. Pois cada indivíduo, na sua singularidade, é livre para adotar suas próprias rotas de vida, responsabilizando-se por suas opções.  Todavia, temos um espaço de possibilidades no qual poderemos nos movimentar. Na condição de seres co-criadores, em plano menor, dispomos de potenciais criativos que, uma vez aplicados para o Bem,  potencializam o Belo, dignificando-o. Temos, portanto, a possibilidade de nos compromissarmos com o Bem e o Belo, alterando – aos poucos – nossas próprias paisagens mentais. Se não podemos mudar os outros, pelo menos, temos o poder para mudarmos a nós mesmos, o que já é uma admirável possibilidade. Alterar certos comportamentos mentais, que fazem parte de nossa rotina, para atitudes mais construtivas, é o que em ciência se chama de mudança de paradigmas. Os paradigmas são as lentes ou os referenciais pelos quais vemos e nos relacionamos com o mundo a nossa volta. Quem se detém assistindo os combates de lutas, na modalidade do “vale-tudo”, ou coisa do gênero, se felicitando com as cenas de brutalidade e agressividade desses eventos, permite-se um tipo de “diversão” grotesca que lida com as estruturas mais primitivas do ser.
Aquilo que denominamos de “oficina de sentimentos” é, justamente, o espaço relacional/cultural onde vivenciamos múltiplas experiê ncias que mexem com nossas estruturas de sentimentos. Nessa oficina se faz reparos, se ajusta e se conserta, isto é, se melhoram os sentimentos em conjunto com as relações. Há, no entanto, sempre resistências internas e externas que visão dificultar o processo de melhoramento humano e cultural da sociedade.  Podemos considerar que todo artista enfrenta, sob algum aspecto, a resistência do material em que deseja gravar sua ideia.  Somos, sob vários sentidos, os “artistas” de nossas vidas, buscando esculpir na tela de nossos sentimentos, a paisagem notável do Bem e do Amor. Claro está, portanto, que nossas estruturas internas, ancestralizadas nos vícios ou em zonas de conforto, reagem para que possamos continuar sendo o homem velho e acomodado nos prazeres triviais, cristalizados há séculos. As influências externas, da cultura líquida, trabalham, também, para que permaneçamos consumidores de futilidades, preservando as mesmas estruturas (velhas) de sempre. O próprio Bauman tem o ensejo de proclamar:
 Portanto, somos todos artistas de nossas vidas – conscientemente ou não, de boa vontade ou não, gostemos ou não. Ser artista significa dar forma e condição àquilo que de outro modo seria sem forma ou aparência. Manipular probabilidades. Impor uma “ordem” no que, de outro jeito, seria o “caos”: “organizar” uma coleção de coisas e eventos que, não fosse isso, seria caótica – aleatória, fortuita e imprevisível - , tornando ocorrência de alguns desses eventos mais provável que a de todos os outros.[6]  
O referido sociólogo não é um defensor das ideias espíritas e, talvez, pouco ou nada as conheça. Mas o seu raciocínio serve de argumento para uma reflexão oportuna e necessária sobre o nosso papel diante da vida e da cultura. Os seus limites conceituais e epistemológicos sobre a natureza humana não impedem a sua crítica à sociedade utilitarista de nossa época. Convém insistirmos, no entanto, para o olhar sociológico apresentado pelo espiritismo não se resume a uma mera crítica da cultura materialista, mas a uma cosmovisão de sua estrutura evolutiva. Novamente, sob esse olhar mais profundo, o sentido atribuído a uma “vida boa” vinculada a um superficialismo hedonista, passa a ser visto, na visão espírita, como decorrência de um comportamento equilibrado, vitalizado pelo bom senso.  As relações materiais da existência, contudo, não podem ser vistas como uma espécie de “vilã” ou coisa do gênero. O bom uso que delas se faz é imperativo de crescimento e progresso do espírito.
O estudo e a reflexão de temas contemporâneos, à luz do espiritismo, fazem parte de “uma conversa em andamento”, que se imagina, colabore para um esclarecimento maior dos dilemas atuais, apontando-se – naturalmente – caminhos plausíveis para repensarmos nossas ações no mundo. O conceito de “pessoa bem sucedida”, que vira uma verdadeira “celebridade” no mundo competitivo e corporativo, nem sempre atinge o mesmo status em sua dimensão humana e espiritual.  A denominada “vida de aparência”, decorrente de um hiper-real, parece tocar as mentes mais vulneráveis, para as quais, por vezes, “os meios” justificam “os fins” e o que importa são as representações sociais e os prazeres delas decorrentes.
 Doravante a ilusão se desfaz sob a égide dos desafios que impelem o sujeito ao crescimento para uma substancial felicidade. Nesse curso, sentindo-se esvaziados, muitos são tomados pela melancolia, pelo pessimismo, com os quais – quando militam no campo da arte – terminam impregnando suas obras. Outros, no entanto, mantêm-se convictos em suas ideias pessimistas, fruto de temperamentos desvairados, quando não, enlouquecidos. Suas ideias terminam influenciando outras tantas criaturas, ecoando na multidão que as absorve.  Em um de seus raros livros escritos em forma de confissões, intitulado Ecce Homo, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que por suas ideias antidemocráticas serviu de inspiração ao nazismo, escreveu: “Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! (...) Derrubar ‘ídolos’ – é assim que chamo todos os ideais -, esse é meu verdadeiro ofício.”[7] Sem desejarmos um olhar mais crítico sobre o complexo pensamento de Nietzsche, o que não é propósito desse artigo, apenas citamos o seu caso para ilustrarmos a tendência pós-moderna do pensamento que “desconstrói” e que “fragmenta” os valores.
A cultura e o pensamento materialista, do presente e do passado, podem ser analisados por meio da “Parábola da Figueira que Secou”, narrada por Jesus.  Nela, temos uma valiosa reflexão sobre a falta de solidez das ações e das ideias humanas. Na interpretação de O Evangelho Segundo o Espiritismo:

Simboliza todos aqueles que, tendo meios de ser úteis, não o são, todas as utopias, todos os sistemas ocos, todas as doutrinas carentes de base sólida. (...) Quer dizer que todos os sistemas, todas as doutrinas que nenhum bem para a humanidade houverem produzido, cairão reduzidas a nada.

E.S.E. Cap. XIX, item 9

A “Figueira Seca” simboliza, portanto, os que, tendo possibilidade, nada de Bem produzem. Por vezes, ainda, há os que se dedicam a negá-lo. Estamos, todavia, fadados a essa cultura? Não. A cultura do sólido e, portanto, do Bem ganhará espaços quando nos dispusermos a construí-la e solidificá-la em nossas mentes e corações, adotando os princípios afirmativos da vida e do amor como normativas de conduta. O espiritismo, em seu profundo e amplo horizonte doutrinário, é um poderoso estimulador dessa nova era. Desafia-nos a ampliar nossa forma de olhar a vida e de nos relacionarmos com ela, não mais nos estreitos limites da materialidade do mundo físico (sem, no entanto, menosprezá-la), mas na globalidade da expressão espiritual, da compreensão dos mecanismos reencarnatórios, da comunicabilidade mediúnica, da justiça divina e da lei da evolução. Todo esse dinamismo doutrinário, não-dogmático, de expressão tríplice, interdisplicinar (ciência, filosofia e religião) oportuniza uma compreensão mais aperfeiçoada dos dilemas existenciais, não adequadamente compreendidos no passado.
Na questão 800 de O Livro dos Espíritos, tratando sobre o progresso da sociedade e a influência do espiritismo, temos a seguinte resposta dos benfeitores:  “As ideias só pouco a pouco se modificam, conforme os indivíduos, e preciso é que algumas gerações passem, para que se apaguem totalmente os vestígios dos velhos hábitos. A transformação, pois, somente com o tempo, gradual e progressivamente, se pode operar. Para cada geração uma parte do véu se dissipa.” Portanto, a “figueira seca” não está perdida, tão pouco foi decretado o seu completo extermínio. Na essência, ela irá passar, com já está passando, por um processo de revitalização, isto é, de revisão e aprimoramento, a fim de “renascer e se regenerar”.  Não se trata de nenhuma profecia ou de uma previsão teológica. Na verdade, estamos presenciando, em todos os setores da vida humana, um constante questionamento, uma inquietação que reflete, na verdade, o resgate da calma ou, simplesmente, de tempo para apreciar o belo. Numa sociedade que vive o consumo, o aceleramento e a tecnologia, paradoxalmente, estamos em busca de poesia, de paciência e de paz.
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Referências

[1] KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVII – Sinais dos Tempos, item 25.
[2] FRANCO, Divaldo P. (Pelo espírito Manoel Philomeno de Miranda) Transição Planetária. 3ª Ed. Salvador/BA: LEAL, 2011.
[3] BAUMAN, Zygmunt. A Arte da Vida.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2009. P. 71.
[4] FRANCO, Divaldo P. Transição Planetária. Op cit. P. 240.
[5] Idem. P. 242.
[6] BAUMAN, Zigmunt. A Arte da Vida. Op.cit. P. 163.
[7] Citado por: FERRY, Luc. Aprender a Viver- Filosofia para os novos tempos.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. P.  177. 

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