domingo, 27 de fevereiro de 2011

CARNAVAL: O MUNDO ÀS AVESSAS - UM OLHAR HISTÓRICO


Nas sociedades antigas, anteriores à Era Cristã, as festas pagãs estavam fortemente vinculadas às mudanças de estação, configurando os ritos de passagem. As cerimônias de passagem e de purificação compunham, no universo das representações, a transição do inverno (estação que simbolizava a morte) para a primavera, que anunciava o renascimento da vida. As “saturnalias”, por exemplo, eram festividades oferecidas a Saturno, o deus da fertilidade e, ao qual, associava-se a idéia da abundância e do excesso.
Por ocasião desses festejos, instituiu-se uma espécie de reversão da ordem social. Momentaneamente, os escravos assumiam a posição dos senhores, sendo-lhes permitido gozar dos benefícios da classe dominante, em meio a muita comida e bebida. Vivia-se um período festivo onde buscava-se a transgressão temporária da ordem estabelecida. Tais festejos e cerimônias, onde certos participantes usavam máscaras (de animais), dançavam, cantavam e cometiam excessos sexuais, atingem, também, o mundo medieval.
A palavra “carnaval” teria, no mínimo, um duplo significado: o primeiro estaria vinculado aos excessos cometidos também em relação à alimentação, daí: “carne vale”; ou, numa segunda hipótese, em referência aos carros alegóricos utilizados nos cortejos: “curris navalis”. Seja como for, o fato é que a “festa dos loucos”, assim denominada na Idade Média, permitia a exaltação dos pobres e oprimidos, na reversão momentânea de suas posições sociais, liberando seus desejos e imaginação.
Na prática, essa tradição ancestral, permeada de sincretismo – com suas variações – fazia parte da cultura dos Celtas e Germânicos, povos extremamente importantes na formação da Europa medieval. Esses festejos, muito embora o confronto com a Igreja Católica, terminaram sendo incorporados na cultura Ocidental cristã.
Para o filósofo russo Bakhtin, o carnaval representava o “mundo às avessas”, pois originava um mundo “não-oficial”, exterior à Igreja e ao Estado. Assim, o tempo do carnaval ficava pleno de possibilidades e deixava de ser mediado pelas categorias usuais que distinguem os indivíduos: riqueza, posição social, poder, etc.
A rigor, adotando-se o viés da “loucura”, ou “loucos” (foliões) poderiam agir com extrema liberdade na manifestação de seus impulsos reprimidos pela ordem religiosa e social vigentes. Todavia, deste o século IV, a Igreja havia instituído o período da quaresma: nos quarenta dias que antecediam a Páscoa os fiéis eram constrangidos a viverem em abstinência da carne (menos de peixe), de sexo e de divertimentos. Isso objetivava um duplo fim: fazer os fiéis relembrarem anualmente o martírio, morte e ascensão de Cristo, e puni-los pelos excessos cometidos no ciclo festivo de inverno (no hemisfério norte), o carnaval.
A “festa dos loucos”, trazida pelos portugueses, chegou ao Brasil por volta do final do século XVI. Provavelmente foi nesse período que se introduziu no Brasil o Entrudo. Trazidos por colonizadores portugueses das ilhas da madeira, açores e cabo, No Entrudo as pessoas se jogavam água suja, farinha, ovos, etc. Essa “brincadeira” era praticada em família e, mesmo, nas ruas, gerando-se um problema para as autoridades locais. Para muitos pesquisadores, há uma relação próxima entre esse divertimento e o carnaval. Nesse caso, ocorreu provavelmente, pelo processo histórico, uma fusão ou mescla entre esses dois elementos, definindo novos comportamentos socioculturais. 
No período monárquico brasileiro, a elite aderiu, obviamente, ao modelo de festa carnavalesca européia, principalmente o de Veneza. Aderiu-se aos bailes de máscara em clubes e teatros. Segundo o antropólogo Roberto Damatta, a partir de 1840 é que os chamados bailes de clubes passaram a ganhar mais espaço na sociedade carioca. Antes disso, o carnaval, no Brasil, era uma espécie de festa familiar e de bairro.
Mesmo no início do século XX, por mais que a presença popular fosse ganhando espaço, o carnaval ainda continuava uma festa para os mais abastados. Todavia, foi com o governo de Getúlio Vargas, a partir dos anos 30, que os interesses políticos vigentes permitiram que o carnaval brasileiro assumisse uma matriz mais popular, também de influência negra. Pode-se dizer que no período do Estado Novo (1937-1945), Getúlio buscou a definição de uma “identidade nacional” para o Brasil. Com isso, o carnaval passou a ser trabalhado como um dos três pilares dessa identidade, funcionando como uma espécie de ”festa agregadora” na nacionalidade.
O carnaval não é, portanto, uma festa tipicamente brasileira. Em Nova Orleans (EUA) o carnaval começa em 6 de janeiro. Em Veneza, o carnaval ocorre ao longo de dez dias, iniciando em 6 de fevereiro. É um carnaval mais comportado, com as tradicionais máscaras e fantasias que remetem a realeza do passado. Não há músicas características. Na programação se inclui até shows de jazz. Já na Inglaterra o carnaval é celebrado somente em dois dias do feriado bancário do mês de agosto. A festa londrina, por exemplo, envolve desfiles e comilança farta.
Em seu livro, “Carnavais, Malandros e Heróis”, Damatta situa o carnaval no universo dos rituais brasileiros, onde uma parcela mais despossuída da sociedade ganha o centro das avenidas e o foco das atenções.
É nesses dias que a “atriz global” vai ao encontro dos pobres e anônimos integrantes das escolas de samba, para “aprender” sobre o desfile e ensaiar os passos certos. Esse parece ser um rito que pretensa e superficialmente, assume o papel de homogeneizar as categorias sociais. Categorias que, via de regra, estão à margem da sociedade. Dessa forma, os ritos “revelam coisas”, mas também “encobrem coisas”.



Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec/Unb, 1987.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2000.

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