domingo, 9 de junho de 2013

A FILOSOFIA ESPÍRITA

Jerri Almeida

A rigor, O Livro dos Espíritos é a obra fundadora da Doutrina Espírita e, portanto, do que chamamos de “filosofia espírita”. Nos meios intelectuais, alguns pensadores continuam negando o caráter filosófico dessa Obra codificada por Kardec. Gonzáles Soriano, em seu ensaio intitulado: “El Espiritismo es la Filosofia”, mesmo sem ser espírita, assevera que o Espiritismo é: “...a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicados à investigação da verdade.”[1]  Ora, a longa tradição filosófica do Ocidente, buscou na razão as interpretações que se julgavam “lógicas” e “aceitáveis”, para explicar o mundo.
A filosofia, no seu nascedouro, buscou romper com a explicação mitológica da realidade, muito comum nas sociedades agrárias antigas. Embora, ainda hoje, se aceitar a definição de Pitágoras, num sentido mais etimológico, de que a filosofia signifique: “amor à sabedoria”, podemos perceber num sentido amplo que o que existe, de fato, são “filosofias”, ou seja, concepções diferentes sobre a realidade. Nos vinte e cinco séculos de tradição filosófica Ocidental os inúmeros filósofos e suas escolas conceberam filosofias distintas e, muitas, conflitantes.
Quer se afirme que a filosofia seja: um conjunto de saberes, uma visão de mundo ou um modelo explicativo da vida, é importante lembrarmos o pensamento do filósofo Sexto Empírico, do século II-III, ao afirmar que em toda investigação temos três resultados possíveis: acreditamos ter encontrado toda a resposta; acreditamos ser impossível encontrar a resposta, ou continuamos buscando. Para ele, a filosofia deveria repousar nessa última questão, ou seja, de que o conhecimento não é algo pronto, acabado, fechado, mas, sobretudo, progressivo. Nada é sagrado, pois tudo é objeto de crítica e análise.
Allan Kardec, embora não ter sido propriamente um filósofo, teve a grandeza intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita em torno de uma “verdade única”, dogmática. Esse é um caráter intrínseco do discurso filosófico: a liberdade de pensamento, aberto à reflexão e ao progresso das ideias. 
O Espiritismo na medida em que busca explicar a realidade através da razão e da lógica, utiliza-se de um discurso filosófico. Todavia, a filosofia espírita, inaugurada em O Livro dos Espíritos, não traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos ou significados, Ao contrário, a filosofia espírita, é um saber que se justifica com base nos fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que Kardec não partiu da “crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da mediunidade, para, num segundo momento, enveredar pelos caminhos da interpretação dos fatos, com base no crivo da razão. Disso surgiu a filosofia espírita inserida inicialmente em  O Livro dos Espíritos.
Para Marcondes: “A contribuição da filosofia tem sido, portanto, desde o seu nascimento na Grécia antiga, a interrogação, o questionamento, a pergunta. Para a filosofia não há nada que não possa ser posto em questão. Deve ser possível discutir tudo.”[2] Sob esse aspecto, O Livro dos Espíritos, em suas 1019 perguntas ou questionamentos, se afirma no discurso filosófico. Kardec indagou os espíritos sobre um universo de questões que sempre inquietaram o pensamento humano: Deus, a alma, a origem da vida, a morte, os problemas sociais e familiares, a liberdade, o sofrimento, o destino e a felicidade, entre outros.  Dessa forma, a Obra Primeira da Doutrina Espírita avança, no seu modelo explicativo da vida, por onde outras filosofias se calaram, vítimas dos preconceitos ou do orgulho de seus formuladores.
Um estudo atento de O Livro dos Espíritos evidencia a busca constante de Kardec, por explicações plausíveis, que possam atender à coerência e ao bom senso. Ele interroga os espíritos com firmeza, cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo tempo – buscando libertar-se de preconceitos e atavismos culturais de sua época, muito embora, seria ingenuidade pensar numa “neutralidade absoluta”.
Há, naturalmente, uma “busca incessante” de conhecimentos e reflexões, iniciadas em O Livro dos Espíritos e que, evidentemente, não pára com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto das Obras Básicas, um dinamismo inesgotável, uma vez que a experiência da evolução espiritual vai oportunizando, ao Ser, uma ampliação de seus horizontes intelectuais.
Portanto, uma vez estabelecida a base estrutural do conhecimento espírita, em 18 de abril de 1857, o seu núcleo passa a ser a análise do homem na condição de espírito imortal e pluriexistencial. Define-se uma ontologia integrando a filosofia espírita no conjunto da tradição filosófica dualista: pitagórica, socrática, platônica, entre outras. Mas o espiritismo vai além do dualismo filosófico, estudando o Ser numa dimensão tríplice: espírito, perispírito e corpo. A partir dessas informações, buscamos aprimorar instrumentos de investigação que nos permitam compreender ou desvendar melhor essa realidade espiritual.
É preciso considerar, também, que O Livro dos Espíritos apresenta dois outros componentes importantes da reflexão filosófica: o diálogo e a dialética. Kardec, em todo o conjunto da Obra, dialoga com os espíritos através de inúmeros médiuns. Esse diálogo é uma relação dialética, de um conhecimento que não é uma simples “revelação” hierarquicamente estabelecida, mas que se opera pela via do debate e da discussão. A partir de uma pergunta, e de sua resposta, surgem outras perguntas e outras respostas que, ao longo do trabalho, são sistematicamente ordenadas.
 Essa relação dialética se processa também, no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo se distancie das leituras simplistas, onde, muitas vezes, se busca afirmar o conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou, por óbvias razões, a dialogar com a fonte das informações, os espíritos, de forma racionalista sem, no entanto, perder o viés dos sentimentos. A racionalidade empregada aos estudos deve servir para que os seus conteúdos nos levem a um encantamento, no bom sentido do termo, pela vida.

Notas

[1] Citado por Herculano Pires. Introdução à Filosofia Espírita. 2ª. ed. São Paulo: FEESP, 1993. P. 20.
[2] MARCONDES, Danilo. Para que serve a filosofia? (Prefácio) In. Café Philo: As grandes indagações da filosofia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,  1999.

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