sábado, 1 de fevereiro de 2014

LEITURA E POSSIBILIDADES

De forma muito evidente, Goulemot explica que: “Ler é dar um sentido de conjunto, uma globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequencias.”[1] Ler é constituir sobre o texto, um sentido não fragmentado, mas de conjunto. A situação de leitura busca oferecer ao leitor, na interação com o texto, não um simples sentido das palavras ou do grupamento de frases, mas o mergulho mais profundo no oceano das “ideias”.
O ato de ler implica numa série de variáveis importantes, auto evidentes. Roland Barthes espantou os professores em um congresso na França, ao declarar que lia com maior frequência e aproveitamento no banheiro. Certamente com esse exemplo, ponderava que o ato da leitura implica também numa relação ou atitude com o meio: ler em pé, sentado, em grupo, solitário, em público, à luz de um abajur, num ambiente em condições climáticas adversas, influencia a disposição pessoal no ato de ler.
No aspecto psicológico, as condições emocionais, espirituais, religiosas e culturais, em casos mais ou menos extremos, irão reverberar sobre o indivíduo no momento de sua interação com o texto, podendo constituir fatores de aproximação ou distanciamento de sentido. Assim, ideias cristalizadas sobre um determinado assunto, preconceitos, valores edificados sobre algo, fatores midiáticos, ideológicos, políticos, atavismos religiosos, entre outros, participarão, com maior ou menor intensidade, na interação com o texto e na produção pessoal de sentidos sobre ele.
A cada leitura, o que já foi lido muda de sentido, podendo aprimorar seu significado. Logo, ler é “estar aberto” constantemente para novas possibilidades.
Nos grupos de estudos do espiritismo, a leitura deixa de ser simplesmente um ato privado, íntimo e particular, para se conjugar com outras leituras e se socializar determinados “sentidos”. Passa a ter o caráter de um “deciframento” coletivo que, por vezes, ultrapassa a percepção individual de leitura. É um grupo que “interroga” um mesmo ou vários textos, buscando articular um (ou vários) sentidos sobre ele ou eles.
Todavia, o abrir-se para os textos, ao longo dos estudos em grupo, não deve gerar uma preocupação radical com a uniformidade dos sentidos, ou necessariamente adequar-se a compreensão que comumente a maioria do grupo construiu.
Essa leitura convergente, seguida de debates, permite de certa forma, uma autoanalise sobre os sentidos (individuais) atribuídos ao texto, conforme menciona o sociólogo Pierre Bourdieu: “Se é verdade que o que eu digo da leitura é produto das circunstancias nas quais tenho sido produzido enquanto leitor, o fato de tomar consciência disso é talvez a única chance de escapar ao efeito dessas circunstancias.”[2]
A leitura, e o consequente estudo, da obra kardequiana é um constante convite para se escapar ao efeito dessas circunstancias, na medida em que estimula a construção de novos significados, mexendo com velhas estruturas de pensamento. Dessa forma, a leitura é um processo inquietante, mas não necessariamente, angustiante. Aproximar-se da leitura e experimentar sua presença constante ao longo dos estudos espíritas, eis o primeiro convite, pois o segundo consiste no processo de interpretação dos textos, assunto que discutiremos na sequencia.
Deve-se, portanto, perceber que no processo da leitura é fundamental articular os vários sentidos produzidos pelo texto, socializando-os dialeticamente nas reuniões de estudo para reconfigurar, ou não, o teor desses sentidos. Um dos primeiros desafios a ser superado pelo leitor é a ideia de “sacralização do texto”. Nenhum texto, no espiritismo, é sagrado, isto é, nenhum texto ou autor, está acima de qualquer análise. O leitor deve se revestir dessa tranquilidade, para interagir com o texto com naturalidade e senso crítico.  
Qualquer texto (e autor) que entre para “a ordem do sagrado” afasta o leitor dos pressupostos das análises e das trocas intelectuais horizontalizadas. Isso pelo fato do conteúdo do texto ser entendido de forma verticalizada, pelo viés da revelação.  O que sempre representa uma manifestação do poder totalitário e dogmático.
Após sua Viagem de 1862, Kardec entusiasticamente percebendo a multiplicação de grupos de estudos, anotou:
Neles ocupam-se pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para a leitura e explicação de ‘O Livro dos Espíritos’, ‘O Livro dos Médiuns’, e de artigos da ‘Revista Espírita’. (...) Aplaudimos de todo o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir os melhores resultados. (Grifos meus)

A atenção se voltava para a “leitura” e “explicação”, em grupo, de alguns textos publicados por ele até aquele ano. Aqui já percebemos uma prática inicial de estudo, ao que tudo indica, integrando vários textos de Kardec. Mas não se trata de uma simples leitura, mas de uma leitura seguida de explicações que conduzem para a compreensão. A afirmação é do próprio professor Rivail: “Um (...) sinal característico dessa época é o número incalculável de adeptos que nada viram e que, nem por isso, deixam de serem menos fervorosos, simplesmente porque leram e compreenderam.”[3]
Durante os estudos é natural que surjam objeções e dúvidas sobre o conjunto ou partes da teoria, sobre aspectos pertinentes a determinado tema, confrontação de textos de outros autores com os de Kardec e dos espíritos, o que deve estimular o estudante a encontrar respostas através da própria leitura.[4]  Ler bem é tornar-se apto para perceber as “dobras do texto”, tema que está associado a questão da interpretação. No entanto, desejamos ponderar que para “ler bem” não se faz necessário grandes habilidades linguísticas, mas o comprometimento com a compreensão do espiritismo.


NOTAS

[1] GOULEMOT, Jean Marie.  Da leitura como produção de sentidos. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p.108.
[2] BOURDIEU, Pierre. A leitura uma prática cultural. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 234.
[3] KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862. Impressões Gerais. Ed. Feb, p.11.
[4] Idem, p. 14.

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