domingo, 29 de janeiro de 2012

O MUNDO ÀS AVESSAS




Nas sociedades antigas, anteriores à Era Cristã, as festas pagãs estavam fortemente vinculadas às mudanças de estação, configurando os ritos de passagem. As cerimônias de passagem e de purificação compunham, no universo das representações, a transição do inverno (estação que simbolizava a morte) para a primavera, que anunciava o renascimento da vida. As “saturnalias”, por exemplo, eram festividades oferecidas a Saturno, o deus da fertilidade e, ao qual, associava-se a idéia da abundância e do excesso.
Por ocasião desses festejos, instituiu-se uma espécie de reversão da ordem social. Momentaneamente, os escravos assumiam a posição dos senhores, sendo-lhes permitido gozar dos benefícios da classe dominante, em meio a muita comida e bebida. Vivia-se um período festivo onde buscava-se a transgressão temporária da ordem estabelecida. Tais festejos e cerimônias, onde certos participantes usavam máscaras (de animais), dançavam, cantavam e cometiam excessos sexuais, atingem, também, o mundo medieval.
A palavra “carnaval” teria, no mínimo, um duplo significado: o primeiro estaria vinculado aos excessos cometidos também em relação à alimentação, daí: “carne vale”; ou, numa segunda hipótese, em referência aos carros alegóricos utilizados nos cortejos: “curris navalis”. Seja como for, o fato é que a “festa dos loucos”, assim denominada na Idade Média, permitia a exaltação dos pobres e oprimidos, na reversão momentânea de suas posições sociais, liberando seus desejos e imaginação.
Na prática, essa tradição ancestral, permeada de sincretismo – com suas variações – fazia parte da cultura dos Celtas e Germânicos, povos extremamente importantes na formação da Europa medieval. Esses festejos, muito embora o confronto com a Igreja Católica, terminaram sendo incorporados na cultura Ocidental cristã.
Para o filósofo russo Bakhtin, o carnaval representava o “mundo às avessas”, pois originava um mundo “não-oficial”, exterior à Igreja e ao Estado. Assim, o tempo do carnaval ficava pleno de possibilidades e deixava de ser mediado pelas categorias usuais que distinguem os indivíduos: riqueza, posição social, poder, etc.
A rigor, adotando-se o viés da “loucura”, ou “loucos” (foliões) poderiam agir com extrema liberdade na manifestação de seus impulsos reprimidos pela ordem religiosa e social vigentes. Todavia, deste o século IV, a Igreja havia instituído o período da quaresma: nos quarenta dias que antecediam a Páscoa os fiéis eram constrangidos a viverem em abstinência da carne (menos de peixe), de sexo e de divertimentos. Isso objetivava um duplo fim: fazer os fiéis relembrarem anualmente o martírio, morte e ascensão de Cristo, e puni-los pelos excessos cometidos no ciclo festivo de inverno (no hemisfério norte), o carnaval.
A “festa dos loucos”, trazida pelos portugueses, chegou ao Brasil por volta do final do século XVI. Provavelmente foi nesse período que se introduziu no Brasil o Entrudo. Trazidos por colonizadores portugueses das ilhas da madeira, açores e cabo, No Entrudo as pessoas se jogavam água suja, farinha, ovos, etc. Essa “brincadeira” era praticada em família e, mesmo, nas ruas, gerando-se um problema para as autoridades locais. Para muitos pesquisadores, há uma relação próxima entre esse divertimento e o carnaval. Nesse caso, ocorreu provavelmente, pelo processo histórico, uma fusão ou mescla entre esses dois elementos, definindo novos comportamentos socioculturais. 
No período monárquico brasileiro, a elite aderiu, obviamente, ao modelo de festa carnavalesca européia, principalmente o de Veneza. Aderiu-se aos bailes de máscara em clubes e teatros. Segundo o antropólogo Roberto Damatta, a partir de 1840 é que os chamados bailes de clubes passaram a ganhar mais espaço na sociedade carioca. Antes disso, o carnaval, no Brasil, era uma espécie de festa familiar e de bairro.
Mesmo no início do século XX, por mais que a presença popular fosse ganhando espaço, o carnaval ainda continuava uma festa para os mais abastados. Todavia, foi com o governo de Getúlio Vargas, a partir dos anos 30, que os interesses políticos vigentes permitiram que o carnaval brasileiro assumisse uma matriz mais popular, também de influência negra. Pode-se dizer que no período do Estado Novo (1937-1945), Getúlio buscou a definição de uma “identidade nacional” para o Brasil. Com isso, o carnaval passou a ser trabalhado como um dos três pilares dessa identidade, funcionando como uma espécie de ”festa agregadora” na nacionalidade.
O carnaval não é, portanto, uma festa tipicamente brasileira. Em Nova Orleans (EUA) o carnaval começa em 6 de janeiro. Em Veneza, o carnaval ocorre ao longo de dez dias, iniciando em 6 de fevereiro. É um carnaval mais comportado, com as tradicionais máscaras e fantasias que remetem a realeza do passado. Não há músicas características. Na programação se inclui até shows de jazz. Já na Inglaterra o carnaval é celebrado somente em dois dias do feriado bancário do mês de agosto. A festa londrina, por exemplo, envolve desfiles e comilança farta.
Em seu livro, “Carnavais, Malandros e Heróis”, Damatta situa o carnaval no universo dos rituais brasileiros, onde uma parcela mais despossuída da sociedade ganha o centro das avenidas e o foco das atenções.
É nesses dias que a “atriz global” vai ao encontro dos pobres e anônimos integrantes das escolas de samba, para “aprender” sobre o desfile e ensaiar os passos certos. Esse parece ser um rito que pretensa e superficialmente, assume o papel de homogeneizar as categorias sociais. Categorias que, via de regra, estão à margem da sociedade. Dessa forma, os ritos “revelam coisas”, mas também “encobrem coisas”.


Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec/Unb, 1987. 


DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 


MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 2000.





2 comentários:

  1. Existe alguma chance do carnaval tipico de hoje ter nascido juntos aos escravos africanos, que por sua vez não tinham acesso aos festejos europeus? Vale lembrar que por serem negados esse direito de participarem das festas com máscaras, os próprios africanos iniciaram as chamadas festas populares, que foram ganhando espaços. Elas eram bem parecidas com a forma que se vive os carnavais de hoje. Claro que tinha o caráter mais festivos e menos depravativos. Não é uma afirmação, mas uma indagação!

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  2. Meu caro Leonardo, o pintor francês Jean-Baptiste Debret que veio para o Brasil a convite de D. João VI, no início do século 19, em suas pinturas retratando o cotidiano do Rio de Janeiro, nos apresenta ilustrações de escravos participando dos Entrudos. Possivelmente, com a marginalização dos negros no pós-abolição, as camadas mais populares tenham se apropriado dessa festa que sofre transmutações culturais. Enquanto a classe mais elitizada da população, como ocorria em Pelotas/RS, apropriou-se dos Balmasqués ou "bailes de máscaras" em sociedades recreativas.
    Abraços e obrigado por suas pertinentes observações! Continue prestigiando o blog.

    Jerri Almeida

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