sábado, 27 de fevereiro de 2010

O PENSAMENTO GREGO E O ESPÍRITO

No Ocidente, a concepção da alma como algo substancialmente superior ao corpo, surge na Grécia com o Orfismo.(1) Essa doutrina considerava que existe no homem a presença de algo não mortal que preexiste e sobrevive ao corpo. O Orfismo não vê a alma como simples “sombra” ou “imagem” do morto, mas como a verdadeira realidade do homem. Dessa forma, a alma passaria por diversos ciclos, utilizando-se de outros corpos, para libertar-se de suas impurezas.
Alguns filósofos naturalistas identificavam a alma com os movimentos e os princípios da vida orgânica e da natureza. Tales de Mileto (624-546 a.C.), considerado o primeiro filósofo, no dizer de Santos: “...não podia pensar em uma imortalidade da alma humana, mas, sim, em uma imortalidade de todas as forças anímicas, conforme a concepção de que a matéria jamais pode existir nem atuar sem espírito, nem o espírito sem a matéria.” (2)
Em Anaxímenes (585-528 a.C.) a alma é vista como “uma capacidade organizadora que ultrapassa a sua simples dimensão fisiológica.” (3) Pode-se conceber a alma em Anaxímenes como um princípio que nos “anima, governa e rege”(4) Heráclito de Éfeso (540-476 a.C.) em seu pensamento dialético concebe a alma com um sentido de profundeza, possuindo qualidades que se diferenciam daquelas que caracterizam o corpo físico.
Pitágoras (570-496 a.C.) e as escolas pitagóricas (5) contribuíram para o desenvolvimento do conceito de imortalidade da alma. Pitágoras , foi o primeiro pensador do Ocidente a se referir a idéia da imortalidade da alma individual e a conclusão do processo de transmigração da alma de corpo para corpo. Esse processo de “purificação” estaria consubstanciado no “estudo da ordem divina do universo”, no pensar filosófico e, portanto, na construção do conhecimento. Pode-se supor, a partir disso, que o saber representaria um instrumento de libertação para a alma de seus ciclos reencarnatórios.
Enquanto movimento ético-religioso, o pitagorismo certamente sofreu forte influência do Orfismo, pois ambos representavam uma visão de mundo mais complexa, percebendo o homem num dualismo corpo-alma presente nas religiões ancestrais dos mistérios, vindas do Oriente. Pitágoras, porém, inova a tradição órfica ao defender os esforços para a “purificação”, não só através de práticas ascéticas, mas também por meio do trabalho intelectual. Interpretando o pensamento pitagórico assevera Lara: “Corpo e alma devem empenhar-se na tarefa de conseguir a harmonia interior do homem, condição indispensável para se chegar à contemplação da ordem do Cosmos e à semelhança com a divindade.”(6)
Em sua obra intitulada “Purificações”, Empédocles de Agrigento (493-430 a.C.) se reporta a uma alma humana espiritual e imortal, sob o influxo das idéias órfico-pitagóricas, retomando as reflexões sobre a alma e seu destino, sobre o mortal e o não-mortal.
O poeta grego Homero que viveu no século VIII a.C., na Jônia, Ásia Menor, ficou conhecido amplamente por suas obras: Ilíada e Odisséia. A idéia da alma aparece em Homero de forma substancial: “a psyché escapa como uma fumaça”,(7) por ocasião da morte. E mais: “Durante a noite apareceu a Aquiles, em sonhos, a alma de Pátroclo, rogando-lhe para apressar a cerimônia do enterro.” (8) É na “Ilíada”, Canto XXIII, que Homero se reporta a esse fato:

"(...) estendeu-se o filho de Peleu à beira do mar tumultuoso, gemendo pesadamente, entre numerosos mirmidões, em sítio puro, onde as vagas batiam na praia. Quando o sono o senhoreou, desligando-lhe as preocupações do coração, profundo, envolvente, pois ele fatigara muitíssimo os membros brilhantes ao arrojar-se contra Heitor na direção da ventosa Ílion, apareceu a alma de inditoso Pátroclo, em tudo semelhante a ele pelo porte, pelos formosos olhos, pela própria voz; semelhantes eram também, no corpo, as vestes que trazia. Pairando acima da cabeça de Aquiles, disse-lhe: Dormes e esquece-mes, Aquiles! Não é, em mim, um vivo que desatendes, senão um morto! Sepulta-me quanto antes, para que eu transponha as portas do Hades."(9)

Na Odisséia, comenta Santos: “...quando Ulisses reconhece sua mãe Anticléia defunta, à qual tenta em vão abraçar porque ‘fugia dentre seus braços como uma sombra ou um sonho’”(10) . Vejamos essa passagem inserida no Canto XI da Odisséia, Evocação dos Mortos:

"Surgiu, então a alma de minha defunta mãe, Anticléia, filha do magnânimo Autólico, que eu deixara com vida, ao partir para a sagrada Ílion. Ao vê-la, jorraram-me as lágrimas e meu coração se compadeceu (...). (p. 135)
(...) e eu em meu espírito ardia em desejo de abraçar a alma de minha defunta mãe. Três vezes me lancei para ela, pois o coração me impelia a abraçá-la; três vezes ela se me esgueirou das mãos, como se fosse uma sombra ou um sonho." (p. 139)

Somente por essas referências, parece-nos claro a concepção de uma alma que sai do corpo por ocasião da morte deste. A alma, nesse momento, ganharia então existência própria, permanecendo como “imagem do indivíduo morto”, indo habitar uma região subterrânea onde as almas dos mortos passariam uma estada melancólica: o Hades. Veremos, no entanto, que essa “alma”, conforme o pensamento platônico, não somente subsiste a morte do corpo, como também é capaz de retornar a vida física, em uma nova temporalidade, utilizando-se de uma nova indumentária corporal.


NOTAS POR ORDEM DE CITAÇÃO NO TEXTO

1. Considera-se o Orfismo um movimento religioso-teosófico fundado pelo poeta mítico trácio Orfeu que além da imortalidade da alma, ensinava, também, a idéia das vidas sucessivas.
2. SANTOS. Bento Silva. A Imortalidade da alma no Fédon de Platão: Porto Alegre. Edipucrs, 1999. P.33
3. Idem, p. 34.
4. Ibidem, p. 34.
5. Ibidem. P. 36.
6. LARA , Tiago Adão. A Filosofia nas suas origens gregas. 3ª. Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 1989. P. 57-58.
7. HOMERO, Ilíada. (1999, p.24)
8. HOMERO. Ilíada, XXIII, 72-74; (1999, p. 24)
9. HOMERO. Ilíada, Canto XXIII – Jogos em honra de Pátroclo.
10. SANTOS, Bento Silva (OSB). A Imortalidade da alma no Fédon de Platão: Porto Alegre. Edipucrs, 1999. Pág. 25

Um comentário:

  1. Excelente artigo, confirma a posição kardeciana de que as crenças espíritas são tão velhas quanto o homem, encontrando-se bem delineadas no pensamento grego, uma das nossas matrizes culturais.

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