domingo, 13 de setembro de 2009

A GUERRA FARROUPILHA: O QUE HÁ PARA COMEMORAR?




Todo o ano é a mesma coisa. Aquela data, quase mágica para os mais ufanistas, é lembrada e festejada nos diversos recantos do Rio Grande do Sul, não para relembrar um fato que, na verdade, não há muito que ser comemorado, mas para manter vivo um discurso político. Sim! Estamos nos referindo ao 20 de setembro e as comemorações da semana farroupilha.
É interessante que o escritor gaúcho Alcy Cheuiche, ao término de seu romance intitulado A Guerra dos Farrapos, lançado por ocasião do sesquicentenário da guerra, anotou: “... a guerra até hoje não chegou ao fim.”
O que podemos depreender disso? No mínimo, que essa frase está carregada de significados nem tanto ocultos. A rigor, as relações entre o Rio Grande do Sul e o Governo Federal, no final do regime militar, foram marcadas por desentendimentos políticos e econômicos, à semelhança do que ocorrera em outras épocas e, se podemos dizer, ainda ocorrem hoje, quer sob a questão tributária, ou em relação ao sentimento de marginalização do Estado, no dizer de alguns, ao que se refere às decisões do “poder central”. Dessa forma, as “feridas” se mantinham e, se mantém, “abertas” no que tange aos velhos discursos políticos.
Diante das situações de “crise do Estado” reatualizam-se os empolados discursos onde o problema da crise é devido, entre outra coisas, à posição “periférica” ocupada pelo Rio Grande do Sul, em relação as políticas do Governo Federal. Em 1984, é publicado pela Secretaria de Justiça do Estado, um manifesto intitulado Carta aos libertadores onde, entre outras coisas, afirmava-se:

“A federação é uma farsa. O centralismo financeiro está levando os Estados à insolvência. Nosso Rio Grande sofre, abalado na sua vocação de crescer pelo trabalho e ferido no seu orgulho de povo de lutas, reduzido à condição de pedinte. Jamais acalentamos o espinho divisionista, mas as razões de hoje são mais fortes que as de 35.”

Observam-se, claramente, os discursos evocativos, acirrando os velhos ideais farroupilhas no presente. Por esses, entre outros fatores, é que as comemorações da semana farroupilha se tornam, a cada ano, mais empoladas nas representações do regionalismo sulino e, portanto adequada aos sucessivos discursos políticos e ideológicos de nosso Estado. De certa forma, isso visa colocar, não o Rio Grande do Sul como protagonista de uma “grande façanha”, mas a lógica é exatamente o contrário. Trata-se de vincular a figura do Estado a uma espécie de espoliação do Governo Federal e, com isso, delegamos o teor das grandes responsabilidades a um agente externo.
Esse discurso é interessante, pois, com ele, passa-se a “deslocar” os problemas do Estado e, com isso, tenta-se – de certa forma – resguardar as responsabilidades de nossos governantes locais. Com isso, não estamos defendendo ou desconsiderando as responsabilidades federais diante da séria e evidente questão fiscal, nem mesmo estamos eximindo de responsabilidades o governo federal por sua, às vezes, excessiva centralidade política.
Em 1985, o então Ministro da agricultura e depois governador do Rio Grande do Sul, Pedro Simon, enfatizava:

“[...] A forma pela qual o Rio Grande participa da vida nacional está ancorada em dificuldades que vêm de longa data. Refiro-me à maneira tradicional de inserção do Rio Grande na política nacional. Nossa participação na vida política tem oscilado entre dois extremos. De um lado, a participação periférica no sistema de poder central. Com a revolução de 30 nossos melhores quadros políticos e administrativos emigraram para o centro do país e ocuparam posições de destaque na administração federal. O projeto de modernização que se implantou a partir daí, entretanto, não contemplava o Rio Grande com um posição destacada, equivalente a nossa contribuição para a direção da máquina estatal.”

Ocorre que, passados um longo tempo da guerra farroupilha, os discursos continuam de certa forma, com a mesma tônica, enaltecendo as “diferenças históricas” do Rio Grande do Sul em relação ao Brasil. Muito embora, essas diferenças estarem, em muito, somente no imaginário coletivo dos rio-grandenses através da habilidade de seus dirigentes em “adequar a memória histórica”ao seus interesses. Com isso, as classes dominantes sulinas buscaram, historicamente, fora de suas fronteiras os “culpados” para justificar os seus problemas internos e, portanto, reforçar – ontem como hoje – uma idílica identidade que se revigora nos momentos de crise.
Assim sendo, a guerra farroupilha tem sido difundida, nos mais diversos eventos, como uma insurreição cujo caráter representava os ideais de “liberdade, igualdade e humanidade” que continuam norteando os interesses do Rio Grande do Sul. Sem pretendermos, no breve espaço desse artigo, o aprofundamento dessa questão, torna-se interessante alguns apontamentos sobre o ideário dos farrapos.
A guerra farroupilha enquadra-se no conjunto das tantas revoltas provinciais que investiram contra o Governo Central, no que tange a configuração de um modelo de Estado Nacional Brasileiro que lhes atendesse os interesses de maior liberdade econômica e política. Tal questão definiu uma conjuntura de conflitos pela redefinição de poderes entre as elites regionais, que, no caso do Rio Grande do Sul, era formada, em grande parte, pelos estancieiros e chefes militares da Campanha.
O modelo de governo defendido pelas elites pastoris, com a guerra dos farrapos, pretendia assegurar-lhes o controle sobre o Sul, já que o liberalismo farroupilha era profundamente conservador internamente. Isso fica evidente com a Constituição da República Rio-grandense em seus vários artigos e, especialmente, em seu Título II, Artigo 6º, onde se lê: “São cidadãos rio-grandenses todos os homens livres nascidos no território da República.” Ora, isso excluía do direito à cidadania os trabalhadores escravizados, os imigrantes e as mulheres. Alem do mais, a república dos farrapos excluía de votação nas assembléias paroquiais, entre outros, os que não tivessem renda anual de cem mil réis por bem de raiz, comércio ou emprego.
Ora, que modelo de liberdade é esse de que tanto os rio-grandenses se ufanam? A questão da igualdade defendida pelos farrapos era uma farsa, uma vez que eles próprios não libertaram seus cativos. A liberdade, por sua vez, vinculava-se à idéia de ganhar mais autonomia econômica e política em relação ao Império como forma de garantir a propriedade. A rigor, os farrapos formavam um grupo político, os liberais (moderados e exaltados) que não possuíam um projeto de reformas sociais, mas sim, de ampliação do seu “status quo” dominante.
No passado, como no presente, a manipulação do imaginário social pelo discurso político, potencializa um “sentimento agregador”, indispensável para a formatação da identidade de uma coletividade. Identidade essa, formada pelas representações simbólicas que tipificam a ideologia da classe dominante. Ora, quem tem o poder de criar representações sobre o passado, manipulando a memória, tem o poder de criar “verdades” e perpetuar o próprio poder.
Nesse sentido, as “datas comemorativas” possuem essa função de manter vivo, na memória popular, os elementos simbólicos onde o passado revitaliza o presente. No final do século XIX, Júlio de Castilhos já defendia a comemoração do 20 de setembro como uma data representativa dos ideais republicanos. Após a proclamação da república, na medida em que o PRR (Partido Republicano Rio-grandense) assumia o poder político, passava-se a definir os símbolos oficiais do Estado inspirados na guerra farroupilha.
Portanto, não é de se estranhar que a sede do governo do Estado seja denominada “Palácio Piratini”, em alusão à cidade que foi sede da república Rio-grandense. Ou que o hino Rio-grandense seja uma apologia a guerra de 35, ou então, que a bandeira tricolor do Estado represente os qualificativos da “alma gaúcha”: “a coragem”, “o sacrifício”, “o sangue derramado” para defender o Rio Grande do Sul de seus algozes.
Vivemos num Rio Grande do Sul de muitos matizes e contradições sociais que, na maioria das vezes, parecem ficar submersos, às vezes, alienados, nos festejos superficiais sem o devido aprofundamento da reflexão histórica. Dessa forma, a sociedade gaúcha, continua sendo cooptada, pela mídia, pelo poder institucional e por certos setores intelectuais, a manter vivas as “tradições” dos “donos do poder”.

Referência Bibliográfica

ALMEIDA, Jerri Roberto S. Heróis de Papel as representações sobre a Revolução Farroupilha na literatura. Porto Alegre: Editora Alcance, 2007.

Saiba mais sobre esse livro lendo a sinopse nesse blog.

3 comentários:

  1. Boa noite Jerri!
    Vim conhecer seu blog a convite do Silvano.
    Por se tratar de um assunto que me interessa pois sou uma estudiosa de história do nosso país e também da história universal,vim para saber a opinião de um gaúcho sobre a guerra Farroupilha e suas verdades e mitos.Fiquei encantada com o que li,é muito bom ler uma opinião despojada de ufanismo como a sua.Parabéns pela sinceridade e pela coragem!
    Aprendi um pouco mais sobre vocês gaúchos que eu admiro tanto...
    Claudete(paulista)

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  2. Querida amiga, salve! Importante pensarmos a História o mais livre possivel dessas construções míticas, construidas e reconstruidas para reforçar certos interesses que, certamente, não são os nosso, os "rio-grandenses".

    Abraços, e continue prestigiando o blog.

    Jerri Almeida

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  3. Bom dia, Jerri! Navegando pela internet achei as tuas considerações sobre a Revolução Farroupilha e achei genial. Sou filho de um gaúcho com uma pernambucana, nasci no Rio de Janeiro e hoje moro em Canela. Portanto, tenho raízes bem diversificadas, e não sei se por este fato possuo uma visão bem isenta e desapaixonada dos fatos em questão. Creio que esta paixão do gaúcho por um conflito armado e toda esta veneração a um fato que causou tanta destruição revela um caráter belicoso de um povo que ainda precisa evoluir muito neste quesito. Há claras demonstrações separativistas que nada mais são que expressões de orgulho exacerbado a ser trabalhado em prol da própria evolução espiritual do gaúcho. Ouço ainda hoje declarações ufanistas de que o RS é primeiro mundo, que aqui o povo é mais educado etc etc. Amo este Estado, tanto que escolhi viver aqui, sou casado com uma gaúcha e tenho um filho gaúcho, contudo, tenho a certeza de que esta visão orgulhosa e distorcida da realidade alimentada por muitos sob o pretexto e a bandeira da cultura e da história, é o maior inimigo dos gaúchos, muitos dos quais reencarnações daqueles mesmos combatentes do passado, reencarnados hoje em nosso estado e voltando a repetir o erro de procurar a diferença ao invés da união e entendimento.
    Um abraço, Rodrigo Cavalcanti de Azambuja

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