De forma muito evidente, Goulemot explica que: “Ler é dar um sentido de conjunto, uma
globalização e uma articulação aos sentidos produzidos pelas sequencias.”[1] Ler
é constituir sobre o texto, um sentido não fragmentado, mas de conjunto. A
situação de leitura busca oferecer ao leitor, na interação com o texto, não um
simples sentido das palavras ou do grupamento de frases, mas o mergulho mais
profundo no oceano das “ideias”.
O ato de
ler implica numa série de variáveis importantes, auto evidentes. Roland Barthes
espantou os professores em um congresso na França, ao declarar que lia com
maior frequência e aproveitamento no banheiro. Certamente com esse exemplo,
ponderava que o ato da leitura implica também numa relação ou atitude com o
meio: ler em pé, sentado, em grupo, solitário, em público, à luz de um abajur,
num ambiente em condições climáticas adversas, influencia a disposição pessoal
no ato de ler.
No aspecto
psicológico, as condições emocionais, espirituais, religiosas e culturais, em
casos mais ou menos extremos, irão reverberar sobre o indivíduo no momento de
sua interação com o texto, podendo constituir fatores de aproximação ou
distanciamento de sentido. Assim, ideias cristalizadas sobre um determinado
assunto, preconceitos, valores edificados sobre algo, fatores midiáticos, ideológicos,
políticos, atavismos religiosos, entre outros, participarão, com maior ou menor
intensidade, na interação com o texto e na produção pessoal de sentidos sobre
ele.
A cada
leitura, o que já foi lido muda de sentido, podendo aprimorar seu significado.
Logo, ler é “estar aberto” constantemente para novas possibilidades.
Nos grupos
de estudos do espiritismo, a leitura deixa de ser simplesmente um ato privado,
íntimo e particular, para se conjugar com outras leituras e se socializar
determinados “sentidos”. Passa a ter o caráter de um “deciframento” coletivo
que, por vezes, ultrapassa a percepção individual de leitura. É um grupo que
“interroga” um mesmo ou vários textos, buscando articular um (ou vários)
sentidos sobre ele ou eles.
Todavia, o
abrir-se para os textos, ao longo dos estudos em grupo, não deve gerar uma
preocupação radical com a uniformidade dos sentidos, ou necessariamente
adequar-se a compreensão que comumente a maioria do grupo construiu.
Essa
leitura convergente, seguida de debates, permite de certa forma, uma
autoanalise sobre os sentidos (individuais) atribuídos ao texto, conforme
menciona o sociólogo Pierre Bourdieu: “Se é verdade que o que eu digo da
leitura é produto das circunstancias nas quais tenho sido produzido enquanto
leitor, o fato de tomar consciência disso é talvez a única chance de escapar ao
efeito dessas circunstancias.”[2]
A leitura,
e o consequente estudo, da obra kardequiana é um constante convite para se
escapar ao efeito dessas circunstancias, na medida em que estimula a construção
de novos significados, mexendo com velhas estruturas de pensamento. Dessa
forma, a leitura é um processo inquietante, mas não necessariamente,
angustiante. Aproximar-se da leitura e experimentar sua presença constante ao
longo dos estudos espíritas, eis o primeiro convite, pois o segundo consiste no
processo de interpretação dos textos, assunto que discutiremos na sequencia.
Deve-se,
portanto, perceber que no processo da leitura é fundamental articular os vários
sentidos produzidos pelo texto, socializando-os dialeticamente nas reuniões de
estudo para reconfigurar, ou não, o teor desses sentidos. Um dos primeiros
desafios a ser superado pelo leitor é a ideia de “sacralização do texto”. Nenhum
texto, no espiritismo, é sagrado, isto é, nenhum texto ou autor, está acima de
qualquer análise. O leitor deve se revestir dessa tranquilidade, para interagir
com o texto com naturalidade e senso crítico.
Qualquer
texto (e autor) que entre para “a ordem do sagrado” afasta o leitor dos
pressupostos das análises e das trocas intelectuais horizontalizadas. Isso pelo
fato do conteúdo do texto ser entendido de forma verticalizada, pelo viés da
revelação. O que sempre representa uma
manifestação do poder totalitário e dogmático.
Após sua Viagem de 1862, Kardec entusiasticamente
percebendo a multiplicação de grupos de estudos, anotou:
Neles
ocupam-se pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para a leitura e explicação de ‘O Livro dos
Espíritos’, ‘O Livro dos Médiuns’, e de artigos da ‘Revista Espírita’. (...)
Aplaudimos de todo o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e
não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir os melhores resultados. (Grifos meus)
A atenção
se voltava para a “leitura” e “explicação”, em grupo, de alguns textos
publicados por ele até aquele ano. Aqui já percebemos uma prática inicial de
estudo, ao que tudo indica, integrando vários textos de Kardec. Mas não se
trata de uma simples leitura, mas de uma leitura seguida de explicações que
conduzem para a compreensão. A afirmação é do próprio professor Rivail: “Um (...) sinal característico dessa
época é o número incalculável de adeptos que
nada viram e que, nem por isso, deixam de serem menos fervorosos,
simplesmente porque leram e compreenderam.”[3]
Durante os
estudos é natural que surjam objeções e dúvidas sobre o conjunto ou partes da
teoria, sobre aspectos pertinentes a determinado tema, confrontação de textos
de outros autores com os de Kardec e dos espíritos, o que deve estimular o
estudante a encontrar respostas através da própria leitura.[4] Ler bem é tornar-se apto para perceber as
“dobras do texto”, tema que está associado a questão da interpretação. No
entanto, desejamos ponderar que para “ler bem” não se faz necessário grandes
habilidades linguísticas, mas o comprometimento com a compreensão do
espiritismo.
NOTAS
[1]
GOULEMOT, Jean Marie. Da leitura como
produção de sentidos. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo:
Estação Liberdade, 2011. p.108.
[2]
BOURDIEU, Pierre. A leitura uma prática cultural. In. CHARTIER, Roger. (Org) Práticas da Leitura. Trad. Cristiane
Nascimento. 5ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 234.
[3]
KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862.
Impressões Gerais. Ed. Feb, p.11.
[4]
Idem, p. 14.
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