Crônica de Moacyr
Scliar (Jornal Zero Hora, 08/02/97)
“A nossa mente é como uma
casa em que vivem três habitantes. No térreo, mora um sujeito meio atucanado
chamado Ego. Ele não é propriamente o dono da casa, mas cabe-lhe pagar a luz, a
água, o IPTU, além de varrer o chão, lavar a roupa e cozinhar. Como essas
tarefas fazem parte da vida cotidiana, Ego até que não se queixa. O pior é ter
que conviver com os dois outros moradores.
O andar superior é decorado
em estilo austero, com estátuas de grandes vultos da humanidade e prateleiras
cheias de livros sobre leis e moral. Aí vive um irascível senhor chamado Superego
que dedica todos os seus esforços a uma única coisa: controlar o pobre Ego.
Quando Ego se lembra de uma boa piada e ri, ou atreve-se a cantar um sambinha, Superego
bate no chão com o cetro que carrega sempre, exigindo silêncio. Se Ego resolve
trazer para casa uma namorada ou mesmo uns amigos, Superego, de sua janela,
adverte que não quer festinhas em domicílio.
No porão sujíssimo, mora o
terceiro habitante da casa, um troglodita conhecido como Id, que não tem modos,
não tem cultura, na verdade, mal sabe falar. Em matéria de sexo, porém, tem um
apetite invejável. Superego, que detesta essas coisas, exige que Ego mantenha a
inconveniente criatura sempre presa. É o que acontece durante todo o ano.
No carnaval, contudo, Id se
solta. Arromba o portão do porão e vai para a folia, arrastando o perplexo Ego,
que num primeiro momento, resiste, mas depois acaba aderindo. E aí são três
dias de samba, bebidas, mulheres.
Quando volta pra casa na
quarta-feira, a primeira pessoa que Ego vê é o Superego, olhando-o fixo da
janela do andar superior. Ego sabe que errou e, humilde, enfia-se em casa, abre
a porta do porão para que o saciado Id volte ao seu reduto, e aí começa a
penitência, que durará exatamente um ano.
De vez em quando Ego tem um
sonho. Imagina que os três fazem parte de um mesmo bloco carnavalesco e que
juntos, se divertem a valer. O Superego é inclusive, o folião mais animado. Mas
isso, naturalmente, é apenas um sonho.”
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