Jerri Almeida
A
rigor, O Livro dos Espíritos é a obra
fundadora da Doutrina Espírita e, portanto, do que chamamos de “filosofia
espírita”. Nos meios intelectuais, alguns pensadores continuam negando o
caráter filosófico dessa Obra codificada por Kardec. Gonzáles Soriano, em seu
ensaio intitulado: “El Espiritismo es la Filosofia ”, mesmo sem ser espírita, assevera que
o Espiritismo é: “...a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicados à
investigação da verdade.”[1] Ora, a longa tradição filosófica do Ocidente,
buscou na razão as interpretações que se julgavam “lógicas” e “aceitáveis”,
para explicar o mundo.
A
filosofia, no seu nascedouro, buscou romper com a explicação mitológica da
realidade, muito comum nas sociedades agrárias antigas. Embora, ainda hoje, se
aceitar a definição de Pitágoras, num sentido mais etimológico, de que a
filosofia signifique: “amor à sabedoria”, podemos perceber num sentido amplo
que o que existe, de fato, são “filosofias”, ou seja, concepções diferentes
sobre a realidade. Nos vinte e cinco séculos de tradição filosófica Ocidental
os inúmeros filósofos e suas escolas conceberam filosofias distintas e, muitas,
conflitantes.
Quer
se afirme que a filosofia seja: um conjunto de saberes, uma visão de mundo ou
um modelo explicativo da vida, é importante lembrarmos o pensamento do filósofo
Sexto Empírico, do século II-III, ao afirmar que em toda investigação temos
três resultados possíveis: acreditamos ter encontrado toda a resposta;
acreditamos ser impossível encontrar a resposta, ou continuamos buscando. Para
ele, a filosofia deveria repousar nessa última questão, ou seja, de que o
conhecimento não é algo pronto, acabado, fechado, mas, sobretudo, progressivo.
Nada é sagrado, pois tudo é objeto de crítica e análise.
Allan
Kardec, embora não ter sido propriamente um filósofo, teve a grandeza
intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita em torno de uma “verdade
única”, dogmática. Esse é um caráter intrínseco do discurso filosófico: a
liberdade de pensamento, aberto à reflexão e ao progresso das ideias.
O Espiritismo
na medida em que busca explicar a realidade através da razão e da lógica,
utiliza-se de um discurso filosófico. Todavia, a filosofia espírita, inaugurada
em O Livro dos
Espíritos, não traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos
ou significados, Ao contrário, a filosofia espírita, é um saber que se
justifica com base nos fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que
Kardec não partiu da “crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da
mediunidade, para, num segundo momento, enveredar pelos caminhos da
interpretação dos fatos, com base no crivo da razão. Disso surgiu a filosofia
espírita inserida inicialmente em O Livro dos Espíritos.
Para Marcondes:
“A contribuição da filosofia tem sido, portanto, desde o seu nascimento na Grécia
antiga, a interrogação, o questionamento, a pergunta. Para a filosofia não há
nada que não possa ser posto em questão. Deve ser possível discutir tudo.”[2] Sob esse
aspecto, O Livro dos Espíritos, em
suas 1019 perguntas ou questionamentos, se afirma no discurso filosófico.
Kardec indagou os espíritos sobre um universo de questões que sempre
inquietaram o pensamento humano: Deus, a alma, a origem da vida, a morte, os
problemas sociais e familiares, a liberdade, o sofrimento, o destino e a
felicidade, entre outros. Dessa forma, a
Obra Primeira da Doutrina Espírita avança, no seu modelo explicativo da vida,
por onde outras filosofias se calaram, vítimas dos preconceitos ou do orgulho
de seus formuladores.
Um estudo
atento de O Livro dos Espíritos
evidencia a busca constante de Kardec, por explicações plausíveis, que possam
atender à coerência e ao bom senso. Ele interroga os espíritos com firmeza,
cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo tempo – buscando libertar-se de
preconceitos e atavismos culturais de sua época, muito embora, seria
ingenuidade pensar numa “neutralidade absoluta”.
Há,
naturalmente, uma “busca incessante” de conhecimentos e reflexões, iniciadas em O
Livro dos Espíritos
e que, evidentemente, não pára com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu
potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto das Obras Básicas, um
dinamismo inesgotável, uma vez que a experiência da evolução espiritual vai
oportunizando, ao Ser, uma ampliação de seus horizontes intelectuais.
Portanto, uma
vez estabelecida a base estrutural do conhecimento espírita, em 18 de abril de
1857, o seu núcleo passa a ser a análise do homem na condição de espírito
imortal e pluriexistencial. Define-se uma ontologia integrando a filosofia
espírita no conjunto da tradição filosófica dualista: pitagórica, socrática,
platônica, entre outras. Mas o espiritismo vai além do dualismo filosófico,
estudando o Ser numa dimensão tríplice: espírito, perispírito e corpo. A partir
dessas informações, buscamos aprimorar instrumentos de investigação que nos
permitam compreender ou desvendar melhor essa realidade espiritual.
É
preciso considerar, também, que O Livro
dos Espíritos apresenta dois outros componentes importantes da reflexão
filosófica: o diálogo e a dialética. Kardec, em todo o conjunto da Obra,
dialoga com os espíritos através de inúmeros médiuns. Esse diálogo é uma
relação dialética, de um conhecimento que não é uma simples “revelação”
hierarquicamente estabelecida, mas que se opera pela via do debate e da
discussão. A partir de uma pergunta, e de sua resposta, surgem outras perguntas
e outras respostas que, ao longo do trabalho, são sistematicamente ordenadas.
Essa relação dialética se processa também, no
diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo se
distancie das leituras simplistas, onde, muitas vezes, se busca afirmar o
conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia
tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou, por óbvias razões,
a dialogar com a fonte das informações, os espíritos, de forma racionalista
sem, no entanto, perder o viés dos sentimentos. A racionalidade empregada aos
estudos deve servir para que os seus conteúdos nos levem a um encantamento, no
bom sentido do termo, pela vida.
Notas
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