Jerri Almeida
Kardec e Freud |
Em um
ensaio publicado em 1927, num delicado contexto histórico que marcava o período
entre guerras, Sigmund Freud procurou analisar as origens da necessidade do ser
humano possuir uma crença religiosa. O texto “O futuro de uma ilusão” é o
quarto de uma série de seis ensaios onde Freud aborda temas ligados à cultura e
a sociedade. Ao que parece, o médico vienense pretendia combater, sob o olhar
da psicanálise, os argumentos da fé religiosa, pelo menos, daquelas que ele
conhecera.
Um grande
amigo de Freud chamado Oskar Pfister, reverendo que havia se tornado
psicanalista, pois que desejava utilizar a psicanálise em sua tarefa de “pastor
das almas”, reagiu ao ensaio de Freud, escrevendo um artigo intitulado: “A
ilusão de um futuro”, onde afirmava que a verdadeira fé é uma proteção contra a
neurose, e que a posição freudiana era, ela própria, uma ilusão.[1]
Freud
buscou explicar a origem do sentimento religioso, através dos elementos do
mundo psíquico, ou seja, as ideias religiosas não são produtos da experiência,
são ilusões, são a busca de realizações de desejos mais antigos e fortes da
humanidade, e o segredo de sua força estaria na força desses desejos. Em suas
palavras:
Já sabemos que a
apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção
– proteção através do amor -, que é satisfeita pelo pai; a percepção continuada
desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar a
existência de um outro pai – só que agora mais poderoso. Através da ação
bondosa da Providência divina, o medo dos perigos da vida é atenuado; (...). [2]
Ao que
parece, Freud, que vinha de uma origem judaica, via no sentimento religioso uma
forma de dominação e de imposição de proibições ao pensamento. Todavia, assim como Kardec teve o bom senso
de aceitar a contribuição da ciência no caráter de progressividade do
conhecimento espírita, Freud por sua vez, também teve a grandeza de
manifestar-se de forma muito semelhante: “Se a experiência chegasse a mostrar –
não a mim, mas a outros depois de mim que pensem do mesmo modo – que nos
enganamos, renunciaríamos a nossas expectativas.”[3]
Oportunamente,
um amigo simpatizante do Espiritismo, mostrou-me o referido livro de Freud,
presenteado a ele por um “ateu”, que tentava lhe fornecer argumentos sobre a infantilidade
da fé e do sentimento religioso. Disse-me ele que jamais leria esse livro, com
o qual, mesmo sem ter lido, não concordava, além de considerar um verdadeiro
absurdo que alguém escrevesse um livro para dissimular a ideia religiosa. Mesmo
sem lhe responder nada, a questão do livro me pareceu intrigante, bem como o
comportamento do meu amigo.
Em 1869
foi publicado uma obra escrita por Kardec e ainda muito desconhecida no Brasil:
“Catálogo Racional – Obras para se fundar uma Biblioteca Espírita”. Nessa
publicação, Kardec escreve um capítulo onde argumenta que o espírita deveria,
sim, ler obras que se colocam contra o Espiritismo. Em suas palavras: “Proibir
um livro é sinal de que se o teme. O Espiritismo, longe de temer a divulgação
dos escritos publicados contra si e proibir-lhes a leitura a seus adeptos,
chama a atenção destes e do público para tais obras, a fim de que possam julgar
por comparação.”[4]
Os
argumentos de Freud sobre as manifestações mediúnicas serem um produto da
atividade psíquica dos médiuns e, portanto, considerando o Espiritismo um
absurdo, em nada abala a fé racional construída pelos espíritas. Percebemos, em
seus escritos que ele combatia o que, de fato, não conhecia.
É aqui que entra a atividade dos espíritas, que estão
persuadidos da continuidade da alma individual e que pretendem nos demonstrar
que essa proposição da doutrina religiosa é isenta de dúvidas. Infelizmente,
não conseguem refutar o fato de as aparições e as manifestações de seus
espíritos serem apenas produtos de sua própria atividade psíquica. [5]
[Grifos meus]
Faltou
para Freud, nesse particular, a seriedade do investigador que examina os
fenômenos com o devido cuidado, buscando analisar meticulosamente os trabalhos
de Kardec, Willian Crookes, Oliver Lodge, Frederic Myers, dentre outros. Se
Freud tivesse lido os textos de Kardec teria percebido que o Espiritismo jamais
tentou afastar a dúvida e a racionalidade de suas investigações e
conhecimentos, bem como, jamais negou a possível influencia dos médiuns nas
comunicações. Também Freud evidenciou a
fragilidade de seus conhecimentos nessa área, ao relacionar o Espiritismo ao
conjunto das doutrinas religiosas.
Com isso
desejamos ressaltar que a fé racional, quando bem estruturada no conhecimento e
na reflexão, jamais abalará os seus alicerces diante dos opositores da
Doutrina. Pelo contrário, perceberá o quanto os seus argumentos são
superficiais, mesmo vindos de nomes vultosos. Por isso, a fé racional é
inabalável, por assentar suas bases numa estrutura sólida e lógica, que não
teme o contraditório; se fortalece com ele.
NOTAS
[1]
CROMBERG, Renata Udler. Prefácio.
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2011.
[2]
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão.
Porto Alegre: L&PM, 2011. P. 83.
[3]
Idem. P. 126.
[4]
KARDEC, Allan. Catálogo Racional – Obras
para se fundar uma Biblioteca Espírita. São Paulo: Mandras, USE, 2004. P.
85.
[5]
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão.
Porto Alegre: L&PM, 2011. P. 78.
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