Jerri Almeida
No século XIX a cultura
européia estava sob profunda influencia do racionalismo cartesiano e da física
newtoniana do século XVII. A cultura e o pensamento moderno nascem sob a égide
da razão que se libertava dos grilhões ancestrais da dominação religiosa.
A modernidade se insere no
contexto do pensamento filosófico, através do forte debate entre racionalismo e
empirismo. Os racionalistas confiavam na capacidade do homem em atingir as
verdades universais por meio do pensamento racional, que consistiria na
faculdade humana de bem julgar, de discernir o certo do errado, o verdadeiro do
falso, de forma lógica, na compreensão da própria natureza. Os empiristas, por
sua vez, defendiam que o conhecimento é produto da experiência, ou seja, para
eles não haveriam verdades absolutas legadas somente pela razão, mas
conhecimentos relativos, a partir de uma realidade que está em constante
movimento e, portanto, em transformação.
O século XVII legou, assim,
todo um debate metodológico e epistemológico sobre a apreensão do conhecimento.
No século seguinte, o pensamento europeu se volta, sobretudo, para a ilustração
francesa. O período das luzes se impunha na cultura européia do século XVIII,
de forma mais radical do que os debates entre razão e experiência. Tratava-se,
agora, de depositar na razão um otimismo fundador, uma profunda convicção de
que os problemas humanos seriam resolvidos por ela. O iluminismo, que servirá
de fundamento teórico para a Revolução de 1789, vê na razão humana, o
instrumento que liberta os grilhões da ignorância e da superstição, ao mesmo
tempo em que oferece ao homem, a autonomia necessária para administrar e
construir o próprio destino.
A radicalização da
racionalidade levou a um processo de marginalização da religião e de seu
dogmatismo. Os séculos seguintes herdaram uma mentalidade profundamente
entranhada no absolutismo da razão, que servirá para sustentar o
desenvolvimento tecnológico/industrial, ensejando o culto à ciência, como garantia
de uma nova salvação.
No exame de sua obra,
principalmente no que tange aos seus comentários, percebemos que Kardec foi um
homem de seu tempo. Possuía uma visão profundamente influenciada pelo
pensamento racionalista, mas também, por pressupostos empiristas e
positivistas. Dois aspectos, nesse sentido, podem ser destacados: Primeiro: a
postura de que a razão deve ser o suporte inalienável na busca do
conhecimento. Postura tipicamente racionalista. Segundo: a defesa adotada de
que os fatos falam por si, independentes do pensamento construído sobre eles,
ou seja, uma espécie de objetivismo epistemológico.
Há, sem dúvida, uma forte
influência do Iluminismo francês no pensamento kardequiano. Entretanto, devemos
lembrar que, na época de Kardec, o pensamento filosófico na França sofria,
também, o impacto das ideias de Augusto Comte. Comte (1798-1857) desenvolve os
fundamentos daquilo que ficou conhecido por “positivismo”. Para ele, o
positivismo não seria mais uma, entre tantas correntes filosóficas, mas o último
dos três estágios que a humanidade teria atingido.
No primeiro estágio, a
humanidade passou pelo que Comte chamou de "teológico" e compreendia
o período em que a religião era a forma mais concorrida para explicar o mundo.
O ser humano dirigia suas investigações essencialmente para a natureza
intima, para as causas primeiras, para “os fenômenos (...) produzidos
pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais (...)” Esse seria o mais
“atrasado”. (SIMON, 2005, p. 146-147)
O segundo, o “metafísico”, implicou no
pensamento filosófico, ainda muito abstrato, no tocante a uma explicação mais
coerente da realidade. O terceiro e último estágio, ele denominou de “positivo”
ou científico. Nesse estágio, o espírito humano conforme pensava Comte,
renunciaria em descobrir verdades absolutas: “(...) para preocupar-se
unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da
observação, suas leis efetivas (...)”. (SIMON, 2005, p. 146-147)
A rigor, o pensamento
comtiano conquista mais espaço no meio intelectual francês na primeira metade
do século XIX, período em que Kardec realiza sua formação intelectual e,
posteriormente, seus estudos sobre os fenômenos espirituais. Essa influencia é
bastante clara na introdução que ele escreve no primeiro número da Revista
Espírita, em janeiro de 1858:
Toda ciência deve basear-se em fatos; mas estes, por si sós, não constituem a Ciência; ela nasce da coordenação e da
dedução lógica dos fatos; é
o conjunto de leis que os regem. Chegou o Espiritismo ao estado de
Ciência? Se se trata de uma Ciência acabada, sem dúvida será prematuro
responder afirmativamente; mas as observações já
são hoje bastante numerosas para permitirem pelo menos deduzir os princípios
gerais, onde começa a Ciência.
O exame raciocinado dos fatos e
das consequências deles decorrentes é, pois, um complemento sem o qual nossa
publicação seria de medíocre utilidade e apenas ofereceria um interesse
secundário a quem reflete e quer dar-se conta do que vê. Contudo,
como nosso objetivo é chegar à
verdade acolheremos todas as observações que nos forem dirigidas e,
tanto quanto o permitir o estado dos conhecimentos adquiridos, procuraremos
resolver as dúvidas e esclarecer os pontos ainda obscuros. (KARDEC, 1858,
Introdução)
Temos aqui, vários elementos
para concluirmos que, apesar da influência que o positivismo possa ter exercido
em suas investigações, Kardec jamais desprezou, ao contrario de Comte, a
articulação entre diversas áreas do conhecimento, numa convergência
metodológica para a aproximação da “verdade”. Kardec foi cauteloso, sob alguns
aspectos, com os conceitos utilizados para se definir o Espiritismo. No texto
acima, mantém precaução em afirmar ser o Espiritismo uma “ciência acabada”,
pois reconhecia que a apreensão do conhecimento é um processo dinâmico que está
em constante movimento.
O Espiritismo nasceu da
análise meticulosa de Kardec sobre os fenômenos das mesas girantes. O conjunto
dos conhecimentos obtidos dos espíritos, aplicando a eles o princípio da
universalidade do ensino, do livre exame e da coerência com a razão abriram
novos horizontes para o entendimento da vida. A Doutrina Espírita
desantropomorfiza Deus, apurando reflexões sobre a Causa Primeira de todas as
coisas. Deus como o Ser Supremo nos compreende sob os parâmetros de seu amor
absoluto, com o qual nos oportuniza múltiplas experiências evolutivas. Fomos
criados pelo Perfeito, logo, somos perfectíveis!
Deus oportuniza sempre, não
castiga (por que é amor) e não perdoa (pelo fato de não se magoar).
Espiritualmente passamos por fases de aprendizado, principalmente, sobre nossas
potencialidades internas. Um dos grandes aprendizados é quando descobrimos que
as leis divinas estão arquivadas em nossa consciência. Como afirmou Dora
Incontri: “Pode-se dizer que entramos em novo diapasão, numa compreensão mais
vasta, mais nítida da conexão perfeita e bela de todas as coisas, do sentido e
do propósito da existência e do universo...” (INCONTRI, 2004, p.107)
O Espiritismo não subjuga a
consciência de ninguém! Pelo contrário, liberta-a das crendices e dos medos
construídos pelas religiões. Todavia, no seu amplo horizonte doutrinário,
esclarece sobre as responsabilidades no uso do livre-arbítrio, na medida em que
o sujeito é co-criador de seu próprio destino. Os efeitos éticos e morais do
Espiritismo decorrem dessa nova cosmovisão da vida.
A imortalidade da alma e a
reencarnação, por exemplo, deixaram os pressupostos de uma mera crença, sendo
elevadas ao patamar das evidências científicas. Allan Kardec, escrevendo na
Revista Espírita de 1862 sobre as consequências da doutrina da reencarnação
afirmou o seguinte:
Mas
pretender impor a fé cega neste século é desconhecer a época em que vivemos. A
gente reflete, queira ou não queira; a gente examina, pela mesma força das
coisas; quer saber como e por que. O
desenvolvimento das indústrias e das ciências exatas ensina a olhar o terreno
onde se põe o pé e, por isso, a gente sonda aquele onde marcharemos, segundo
dizem, depois da morte. E se não o
encontramos sólido, isto é, lógico e racional, dele não nos ocuparemos. (...)
Certamente a vida futura não é uma coisa palpável, como uma estrada de ferro e
uma máquina a vapor; mas pode ser compreendida pelo raciocínio. (...) Interroguem-se
àqueles que negam a vida futura e todos dirão que foram conduzidos à
incredulidade pelo próprio quadro que lhes era apresentado, com seu cortejo de
diabos, de labaredas e de sofrimentos sem fim. (1862, p. 104-105)
A rigor, Kardec enfatiza o
roteiro de reflexão que todo adepto do Espiritismo deveria seguir para a
conquista da fé racional, além de
atribuir à incredulidade de muitos aos ensinamentos da tradição religiosa, por
vezes, infantis diante dos novos tempos.
Aquilo que denominamos de “pilares ancestrais da fé”: revelação, temor,
submissão e fidelidade, são elementos revisitados pela crítica espírita.
Apelando para a razão e agregando novos conhecimentos, Kardec não desconsiderou
o papel da “revelação”, uma vez que tratou do tema com profundidade em A Gênese, Cap. 1, sob o título: Caráter da revelação espírita.
Referências Bibliográficas
INCONTRI,
Dora. Para Entender Allan Kardec. Bragança
Paulista-SP: Lachátre, 2004.
KARDEC,
Allan. Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos espíritos. Revista Espírita. Outubro de 1865.
Edicel.
KARDEC,
Allan. Revista Espírita. Janeiro/1858, Introdução. Edicel.
KARDEC, Allan. Reação das ideias espiritualistas. Revista Espírita. Outubro de 1863. Edicel.
KARDEC, Allan. Consequências da Doutrina da
reencarnação sobre a propagação do Espiritismo. Revista Espírita. Abril de 1862. Edicel.
KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. 1 – O Caráter da
Revelação Espírita.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.
Introdução, item XIII. Conclusão, item
VII.
KARDEC, Allan. A Religião e o
progresso. Revista Espírita, julho
1864. Edicel.
PIRES, J. Herculano.
Introdução à Filosofia Espírita. 2ª.
ed. São Paulo: FEESP, 1993. p. 20.
SIMON, Maria Célia. O Positivismo de
Comte. In. RESENDE, Antonio. (Org.) Curso de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 146-147.
Olá!
ResponderExcluirConvidamos o Diálogos Filosóficos a fazer parte do Agregador de Links Espírita.
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Eloy