Jerri Almeida
O insigne investigador que
foi Allan Kardec, sem perder o brilho da sensibilidade, soube articular o duplo
caráter da revelação espírita: divina e científica. Se fosse apenas uma
revelação divina ou espiritual implicaria em manter o homem num estado de
passividade, impondo-lhe verdades sem o direito de exame, verificação ou
discussão. Isso retomaria as antigas revelações verticalizadas do profetismo
hebraico. Todavia, o Espiritismo
representa, também, uma revelação científica, pois no dizer de Kardec:
Participa da
segunda, por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum, mas ministrado
a todos do mesmo modo; por não serem os que o transmitem e os que o recebem seres
passivos, dispensados do trabalho da observação e da pesquisa, por não
renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o
exame, mas, ao contrário, recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada
completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem,
da observação dos fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções
que lhe dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele
próprio as ilações e aplicações. (A Gênese, Cap. 1, item 13)
Logo, o Espiritismo não
segue o princípio da fé cega ou da simples crença. A liberdade de análise é
inerente a condição humana. No entanto, os horizontes de conhecimentos se
alargam com o tempo, em razão do desenvolvimento intelectual e moral da
humanidade. Dessa forma, o “temor” ou o
medo teológico construído no passado, sede lugar a um sentimento de
responsabilidade diante da própria evolução. Não se trata de nenhum castigo
divino, ou coisa do gênero, mas de aprofundar a compreensão sobre as leis
universais e morais que regem nossa dimensão evolutiva. O ser torna-se artífice
da própria desdita ou edifica dentro de si o “reino de Deus” conforme suas
opções pelas veredas do Bem e do Amor.
A rigor, a noção de
“submissão” e de “fidelidade” muda de foco. Se no olhar das teologias ortodoxas
do passado e do presente, o individuo deve ser submisso e fiel aos ensinos
religiosos dogmatizados, agora, sob o ensino espírita, trata-se de guardarmos fidelidade, racionalizada, aos princípios afirmativos da vida, ao Bem e ao
Amor. A fé, por vezes pervertida e
desvirtuada pelo fanatismo, tem levado a negação da vida, ao crime e ao
desamor.
O direito de análise é uma
das mais importantes prerrogativas do ser humano. Escrevendo na Revista
Espírita (outubro de 1863) num texto denominado: “Reação das ideias
espiritualistas” Kardec afirmou:
Mas o homem
chegou as culminâncias da inteligência. Ora, essa idade em que a faculdade de
compreender está adulta, não mais pode ser conduzido como na infância ou na
adolescência. O positivismo da vida lhe ensinou a procurar, dizemos mais,
tornou-lhe necessário o porquê e o como de cada coisa, pois em nosso século
matemático, há necessidade de nos darmos conta de tudo, de tudo calcular, tudo
medir, para saber onde pomos o pé. Quer-se certeza, senão materiais, ao menos
moral, até na abstração; não basta dizer que uma coisa é boa ou má, quer-se
saber porque o é, e se se tem ou não razão
de a prescrever ou a proibir; ela porque a fé cega não mais tem curso em
nosso século raciocinador. (KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1863, p. 294)
Ainda hoje, mesmo com os
denominados grupos de estudo da doutrina espírita, ainda persiste um
significativo desconhecimento entre os adeptos do Espiritismo do pensamento de
Allan Kardec. Para o correto entendimento da fé na visão espírita, é
fundamental nos respaldarmos nas ponderações, orientações e advertências de
Kardec. A inobservância de seu método racionalista e dialético termina gerando
mais uma crença superficial do que, propriamente, uma fé racional.
Não raras vezes nos
deparamos com estudos, em certas Sociedades Espíritas, distantes do que
preconizava Kardec, pois aos participantes é vedada a análise e discussão dos
textos. Todavia, o estudo correto do Espiritismo deve permitir o espaço do
debate fundamentado, da análise estruturada em argumentos lógicos, ao invés de
leituras intermináveis e cansativas sem nenhum aproveitamento. Tal modelo de
estudo, se é que possamos chamar isso de estudo, somente colabora para o
enraizamento de crenças e, portanto, de uma fé também dogmatizada e
superficial. Vejamos que Kardec é um defensor da dialética, ou seja, de um
fluxo argumentativo de ideias, que por vezes geram divergências necessárias ao
aprimoramento do próprio conhecimento.
Em suas palavras:
Por outro
lado o Espiritismo (...) não impõe uma crença cega; quer que a fé se apóie na
compreensão. (...) Assim, a cada um deixa ele [o Espiritismo] inteira liberdade
de exame, em virtude deste princípio que, sendo a verdade uma, mais cedo ou
mais tarde, deve sobrepô-lo ao que é falso, e um princípio baseado no erro cai
pela força das coisas. As ideias falsas, postas em discussão mostram seu lado
fraco e se apagam ante o poder da lógica. Essas divergências são inevitáveis no
começo; são mesmo necessárias, porque ajudam a depuração e o assento da ideia
fundamental; e é preferível que se produzam desde o começo, pois a doutrina
verdadeira delas se desembaraça mais cedo. Eis porque sempre dissemos aos
adeptos: Não vos inquieteis com as ideias contraditórias, que podem ser
emitidas ou publicadas. Vêde já quantas morreram no nascedouro; quantos
escritos dos quais não mais se fala! Que buscamos? O triunfo, de qualquer
jeito, de nossas ideias? Não, mas o da verdade. Se, no número das ideias
contrárias, algumas forem mais verdadeiras que as nossas, elas vencerão e
deveremos adotá-las; se forem falsas, não poderão suportar a prova decisiva do
controle do ensino universal dos Espíritos, único critério da ideias que
sobreviverá. (KARDEC, Allan. Revista Espírita. 1865, p. 295)
Revestido de seu conhecido
bom senso, Kardec assinala que deveremos buscar a verdade, sem temermos o
contraditório, lembrando, no entanto, que o grande critério está no controle do
ensino universal dos espíritos. O direito de análise rompe com a ideia do
“sagrado”.
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