segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

BASES DA "FÉ CEGA"


Jerri Almeida

A fé abraâmica definiu profundamente o arcabouço teológico e psicológico das relações entre os homens e o “sagrado”. A rigor, devemos lembrar que Abraão é visto como uma figura importante para as três grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, isto porque ele representa uma espécie de “encruzilhada” entre os vários povos. Paulo, por sua vez, argumentará que Abraão foi o “pai da fé”. (Romanos 4: v.16-19  e Gálatas 3: v.7)
 O contato entre Abraão e Javé (Yahveh), na alegoria bíblica, traduz uma relação, certamente, fundadora da fé baseada em quatros pilares fundamentais que constituíram grande influência na tradição do pensamento religioso, permanecendo até hoje: “revelação”, “temor” (Gn 22: 11-12), “submissão” e “fidelidade”. Essa lógica ensejou no Ocidente, principalmente durante o Medievo, a configuração de uma teologia do medo, aspecto que analisaremos oportunamente.
A revelação de um deus que se desvela muito parcialmente a um “escolhido” (Abraão), torna-o emissário de suas promessas (uma grande descendência e a terra de Canaã) e, por isso mesmo, propõe-lhe uma “aliança” ou uma relação de fidelidade. (LAMBERT, 2011 p. 371) Essa “fidelidade” estava baseada numa lógica de submissão e confiança ao poder divino. O contexto javista é, portanto, o da aliança estabelecida com Abraão. Inicia-se uma monolatria (fidelidade a deus) onde o patriarca hebreu apesar de não compreender certas determinações divinas, o exemplo mais claro é o sacrifício de Isaac, se preocupa em obedecê-las com total submissão.
Para Guy Lafon, analisando o fato abraâmico, a fé é a posse antecipada do que se espera, ou um meio de demonstrar certas realidades que não estão assim tão claras ou evidentes. Em suas palavras: “foi pela fé que Abraão, respondendo ao chamado, obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança, e partiu sem saber para onde iria.” (LAFON, 1998 p. 60) Está presente nessa narrativa, portanto, uma “fé cega” depositada na promessa divina.  Submisso a essa “promessa”, sem nada mais precisar fazer além de crer, Abraão esperava os benefícios divinos.
Num segundo momento, no livro de Isaías (capítulos 40 a 56) podemos identificar a origem de um monoteísmo radical e de uma escatologia. Conhecido pelo nome de “Dêutero-Isaías” ou “segundo Isaías”, temos a introdução do monoteísmo javistico: “Eu sou o primeiro e o último, fora de mim não há deus.” (Isaías 44:6-45:18-22) E ainda: “Sim, sou deus e não há quem seja igual a mim.” (Isaías 46:9) Em relação ao pensamento escatológico, o texto assinala: “Voltai-vos para mim e sereis salvos, todos os confins da Terra, porque eu sou deus e não há nenhum outro.” (Isaías 45:22-56:1-7) A origem de um único deus e, pela sua onipotência, “salvador”, ensejaria uma mentalidade, por um lado, associada a um profetismo escatológico, e por outro, a um estímulo ao medo, como se percebe em Ageu (2:6), quando anuncia que Javé “abalará o Céu e a Terra, o mar e o continente.”
A narrativa bíblica possui uma racionalidade própria, com grande poder de representação. O problema, todavia, é quando esses elementos imagéticos, apropriados por certos grupos e povos, tornam-se verdades fechadas, vistas pelo viés da “letra”. Na medida em que a cultura escrita se proliferava, as tradições orais vão sendo apropriadas pela cultura do livro e, a “letra”, passa a ser um instrumento do “sagrado”: a “palavra de deus está escrita.”
A fé, com o tempo, assume um papel relevante nas estruturas religiosas institucionalizadas. A rigor, a “dúvida” deve ser anulada, pois se torna um instrumento desestabilizador, capaz de fomentar uma ruptura com a submissão ao sagrado. Saindo das tradições mitológicas hebraicas, e tocando rapidamente no pensamento filosófico, vamos identificar que a fé, quando mais elaborada é constituída a partir de um elemento inicial, que é a dúvida. A confiança, quando respaldada numa crença justificada pela razão, demonstra a superação relativa da própria dúvida. Assunto que trataremos com mais profundidade na segunda parte desse trabalho.


Referências Bibliográficas

BIBLIA SAGRADA Trad. João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa bíblica brasileira, 1972.

ELIADE, Mircea. História das Crenças e da Ideias Religiosas. Vol.1, Trad. Roberto Cortez de Lacerda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2010.

LAFON, Guy. Abraão: a invenção da fé. Trad. Laureano Pelegrin. Baurú, São Paulo: EDUSC, 1998.

LAMBERT, Yves. O Nascimento das Religiões. Da pré-história às religiões universalistas. Trad. Mariana P. S. da Cunha. São Paulo: Loyola, 2011.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. A filosofia grega hoje. In: Caderno de Letras. Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-Germânicas, UFRJ, 18, 2002, p. 23.

PINTO, Porfírio. Nas Pegadas de Abraão. Disponível em:http://religare.blogs.sapo.pt/76658.html
Religião, Sociedade e Cultura. Blog dos Docentes e Investigadores da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

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