Jerri Almeida
Ao longo de seu processo
histórico o homem passou a significar, em diversas manifestações
socioculturais, o seu relacionamento com a morte. A ideia de sua finitude
biológica levou-o, com maior ou menor consciência, a estabelecer – desde tempos
remotos – significados a esse acontecimento inexorável. A necessidade do ser humano compreender a
morte ensejou a criação de mitos, rituais funerários, modelos teóricos
explicativos de sua temporalidade biológica, etc. Da mesma intensidade com que procurou
compreendê-la, o homem vem lutando contra ela. O medo do desconhecido gera
insegurança, devido ao instinto de conservação. Da insegurança ou esperança, do
confronto com essa realidade, nasceram
religiões e filosofias que estimularam o homem à reflexão sobre si mesmo.
Refletir sobre os
significados atribuídos à morte nos ajuda a compreendê-la como experiência
importante para o gênero humano. Analisando ampla bibliografia sobre o assunto,
pretendemos descrever, resumidamente nesse artigo, algumas formas de
relacionamento do homem com a morte, do
ponto de vista histórico, sem perder, no entanto, nossa tese central:
evidenciar a morte como parceira da vida. Os significados atribuídos a morte,
pelo angulo da transcendência, nos levam
a compreende-la dentro do próprio inconsciente coletivo, uma vez que o homem é
um ser pluriexistencial que já vivenciou múltiplas experiências do nascer e do
morrer.
Primeiros significados
A prática de enterrar os
mortos, segundo Edgar Morin,
conforme conhecemos, começou com o Homem de Neandertal. Não raro, encontrava-se
o morto em posição fetal, o que sugere uma crença no seu renascimento.
Adotou-se, também, a prática de abrir cavidade nas rochas, onde os corpos eram
colocados de cócoras e coberto de pedras.
Junto ao corpo eram depositado seus objetos pessoais e alimentos. Segundo
Chiavenato pesquisadores do Museu do Homem de Paris,
teriam descoberto em uma sepultura de 60 mil anos, referente ao homem de
Shanidar, grãos de pólen espalhados ao redor dos fósseis. Diante de tal
descoberta, concluiu-se sobre a importância dos rituais mortuários nesses
grupamentos tribais.
Mais tarde, já com o Homem
de Cro-Magnon, encontrou-se corpos esticados na posição horizontal de costas
para baixo, ou em posição fetal. No
Mesolítico, época dos últimos caçadores e coletores, as sepulturas passam a ser
ovais e pouco profundas, sendo mais comuns as sepulturas coletivas, onde
identificou-se, também, indícios de oferendas ou rituais funerários. Quais os
significados que esses homens ancestrais teriam dado à morte? Difícil afirmar. Todavia, surge a necessidade de cultuar os
mortos e, ao mesmo tempo, salvaguardar
os vivos. Isso ocorre através de rituais que visavam agradar os deuses, na
esperança de proteção. O sentimento religioso surge, portanto, associado a
ideia do temor. E o temor será a base dos estímulos religiosos para a conduta
humana nas diversas sociedades, principalmente, Antiga e Medieval.
A civilização do Nilo, por
sua vez, atribuía à morte uma dimensão metafísica. Em O Livro dos Mortos,
provavelmente com origem na V Dinastia (2.345 a.C.) os egípcios buscavam
indicações sobre a passagem do morto pelas diversas etapas em sua jornada
pós-morte. Os rituais mortuários no
antigo Egito, tipificavam a morte como uma continuação da vida. Daí a
necessidade da preservação do corpo (privilégio, normalmente, da nobreza)
para que o espírito a ele
retornasse, após sua jornada pelo mundo
dos mortos. Atribuiu-se tal importância à morte que quarenta e cinco séculos
antes de Cristo, na mitologia egípcia, Anúbis ou Anpu, era o deus da
morte, presidindo o embalsamamento e o sepultamento. Acreditava-se que o corpo
devia ser conservado para permitir a sobrevivência do duplo (Ka), uma espécie de matéria vaporosa e colorida que adotava
a forma do corpo e do espírito. O espírito ou alma (Ba), por sua vez, era representado por uma chama ou um pássaro que
voaria na direção da luz ou acompanharia o seu sepultamento.
Bem se percebe que a ideia
da imortalidade da alma, do períspirito
e da reencarnação, fazia parte da
cultura religiosa, não só dos egípcios, mas de grande parte dos povos da
Antiguidade. Nesse sentido, a morte personificava, no Egito, não somente a
imortalidade da alma, mas, também, a “imortalidade do corpo”. A morte não era
vista como “fim”, mas como um processo, imanente e transcendente à existência corporal. Entretanto, o destino da alma estava
subordinado ao comportamento do morto, enquanto vivo.
O nascimento da morte
Segundo Long,
a inevitabilidade da morte na mitologia hindu, pode ser bem compreendida em uma
interessante narrativa do Mahabharata, onde um sábio tenta amenizar o
sofrimento de alguém que acabou de perder uma pessoa querida, contando-lhe uma
fábula sobre a origem da morte. Segundo
a história, Brahmã criou tantos seres que a Terra começou a ficar cheia a ponto
de não haver mais lugar para respirar. Nessa época a morte não existia. Nasciam multidões de criaturas mas ninguém
morria. Como resultado, a Mãe Terra começou a sentir-se tão sobrecarregada com
o excessivo número de pessoas que suplicou que Brahmã lhe aliviasse a “carga”.
Ele conteve um pouco de sua energia criadora a fim de prover tanto a criação
quanto a destruição. Com isso, Brahmã dá origem a uma mulher em túnica
escarlate, olhos de intensa luz vermelha, a quem denomina “morte”. Sua missão
seria a de “retirar” da Terra, a seu devido tempo, todos os seres humanos.
Todavia, a morte negou-se a tal tarefa, receando, naturalmente, a ira dos
parentes diante da ausência de seus afetos.
A morte afastou-se então da Terra, para levar uma vida ascética.
Entretanto, Brahmã voltou a persuadi-la para que executasse seu dever.
Finalmente, transformou as lágrimas de sofrimento da morte em moléstias,
instrumentos para remover os seres da Terra.
A história é finalizada
com um ensino moral: “Sabendo que a morte chega para todos, a pessoa não
deveria sofrer. Pois tal como os cinco sentidos desaparecem quando a pessoa
dorme profundamente, e depois voltam à vida quando a pessoa acorda, assim
também, de modo semelhante, as criaturas que morrem vão deste mundo para outro,
e depois voltam para aqui novamente, no seu devido tempo.”
Ora, o criador não poderia
destruir sua própria criação! Encontrou meios de evitar uma super população na
Terra, não destruindo, mas “removendo”
para outros planos da vida, as criaturas humanas. A morte, nessa fábula,
representa o princípio do equilíbrio, sem o qual a vida humana na Terra seria
asfixiada. É uma benção, não uma desgraça. Para alguns historiadores,
entretanto, o temor da morte seria gerado pelo desenvolvimento das idéias
religiosas. Os ensinos de um castigo a pós a morte para aqueles que não agiram
nessa vida de forma adequada fomentaria, em diversas culturas, o medo da morte
pelo que se enfrentaria depois: dores infernais, castigos eternos....
Romantismo e
Realismo
O século XIX, segundo
Ariès,
havia, na Europa, uma certa visão romântica da morte. Entretanto, essa relação
com o imaginário sobre a morte passou, em seguida, para o plano dos fatos
cientificamente analisados. Deve-se a Allan Kardec uma visão nova da morte no
Ocidente. Sob suas incursões investigativas, desvelou-se uma nova atitude do
homem diante da morte. Sem analisá-la de forma simplista ou misteriosa, Kardec
no-la apresenta como um mecanismo da vida, ensejando ao espírito encarnado o
seu natural retorno à pátria de origem.
Parece-nos que o termo
“realismo” define bem o significado espírita da morte. Esse realismo
espiritual, pouco a pouco, se afirma como princípio universal, onde todas
significações religiosas e filosóficas convergiram num admirável sincronismo
onde a morte, passará, definitivamente,
a responder pela continuidade da vida, ensejando ao homem bases mais
seguras para suas vivências e experiências na Terra.
NOTAS
MORIN, Edgar. O Enigma do Homem. São Paulo, Circulo do
Livro. 1973. 3ª Parte, Cap. 1, Página 107
CHIAVENATO, Júlio José. A morte: uma abordagem
sociocultural. São Paulo, Moderna, 1998. Página 13
JULIEN, Nadia.
Minidicionário Compacto de Mitologia. 1ª ed. São Paulo, Rideel, 2002. Páginas
38, 259, 260.
LONG, J.
Bruce. Phd. A Morte que termina com a morte no Hinduísmo e no Budismo. In.
Morte Estágio Final da Evolução. Elisabeth K. Ross. Nova Era.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Tradução:
Priscila Viana. Rio de Janeiro, Ediouro, 2003.
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