O contexto sociocultural e mental da França, pós-revolucionária, vivia o irreconciliável dilema entre o cientificismo irredutível e o pensamento religioso, já devidamente desgastado em seu discurso ético. A Europa via-se diante do emergente processo de industrialização, iniciada na Inglaterra no final do século XVIII, definindo novos ritmos sociais, ao lado das teorias evolucionistas (darwinismo, marxismo, positivismo..) que permearam o pensamento filosófico e científico do século XIX. Havia uma “certeza”, quase ingênua, de que a técnica aliada à ciência, elevasse a humanidade para um novo patamar de plenitude.
Surgindo no século XIX, na França, e convivendo com esse quadro sociocultural, o Espiritismo, por um lado, alinha-se levemente com as teorias evolucionistas e racionalistas de sua época, mas afasta-se delas, na medida em que traz novos elementos de análise e estudo, dilatando as fronteiras do pensamento organicista vigente. O Espiritismo formulando uma teoria evolucionista bastante plausível, sem abandonar totalmente os recursos metodológicos vigentes nas academias, foi conquistando cada vez mais espaço no solo francês e europeu.
Durante um discurso que lhe foi oferecido em Lyon, Allan Kardec afirma: “O Espiritismo propagou-se primeiro nas classes esclarecidas, para lhe dar mais crédito; depois, para que fosse elaborado e expurgado das idéias supersticiosas que a falta de instrução nele poderia introduzir.”
Apesar de contar com os ataques naturais, as críticas corrosivas de diversos setores, a Doutrina Espírita ganhou outros países da Europa, cruzando o oceano com extrema rapidez. No Brasil, as primeiras traduções das Obras de Kardec remontam ao período final do século XIX, primeiro pelo jornalista baiano Luiz Olimpio Telles de Menezes, já na década de 1860, e pelo médico Joaquim Carlos Travassos, por volta de 1875.. Conforme anunciara Kardec, as idéias espíritas articulavam-se, também no Brasil, entre a classe social mais erudita. No entanto, intelectuais como Castro Alves, em 1865, conforme anotou Machado, escrevendo para o folhetim o Diário do Rio de Janeiro, após indagar se o leitor acreditava na nova doutrina, afirmara sua posição em contrário a “essas superstições.”
Com a instalação da República em 1889, muito embora o princípio constitucional da liberdade religiosa e do Estado laico, o meio médico que via na mediunidade uma espécie de transtorno mental do médium, pressionou o governo para uma cruzada contra essas práticas. Com isso, o Código Penal de 1890, em seu artigo 157, qualificava como “delito” as práticas dos “médiuns receitistas.” Além disso, ainda no final do século XIX lia-se notícias do tipo:
"Não foi sem razão que no dia 19 de janeiro deste anno encetamos accerrima campanha sobre esta seita religiosa, que se encobre cynicamente sob o apparatoso nome de SPIRITAS. Seita que acarreta comsigo um grande numero de responsabilidade, visto a correntesa que toma, dia para dia; a onda cresce, se avoluma, arrebenta, vomitando do seio pejado de sombras um sem numero de victimas inconscientes." (A Gazetinha, 6/2/1896, p. 1)
Como se isso não bastasse, nas primeiras décadas do século XX, médicos formados na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, não tinham dúvidas na associação entre Espiritismo e loucura, uma verdadeira questão de “saúde pública”. Em sua tese de doutorado em psiquiatria, defendida naquela faculdade em 1929, João Coelho Marques escreveu:
"O combate ao espiritismo deve ser igualado ao que se faz à sífilis, ao alcoolismo, aos entorpecentes (ópio, cocanina...), à tuberculose, à lepra, às verminoses, enfim, a todos os males que contribuem para o aniquilamento das energias vitais, físicas e psíquicas de nosso povo, da nossa raça em formação."
Alguns psiquiatras chegaram a divulgar estatísticas, evidentemente sem cunho científico, apontando o Espiritismo como uma das principais causas de “distúrbios mentais” no país. Obviamente que com a estruturação do Movimento Espírita no Brasil, principalmente a partir de 1884 com a fundação da Federação Espírita Brasileira, e o processo de Unificação daí decorrente, tais ataques passaram a receber o devido esclarecimento da opinião pública. O próprio Bezerra de Menezes ocupava coluna, escrevendo no famoso jornal “O Paiz”, do Rio de Janeiro. Seu esforço por esclarecer os argumentos que buscavam associar o Espiritismo com a loucura, lhe motivou a escrever, no final do século XIX, seu livro “A loucura sob novo prisma”, onde defende a tese da interferência, também em certos casos de loucura, de agentes espirituais com influência obsessiva sobre o encarnado.
Mas o Espiritismo, apesar de todos os esforços dos espíritas da época, ainda não havia se consolidado. Tratado como doutrina de loucos por uns, associado a uma “seita”, por outros, sua consolidação só veio com a figura paradigmática de Francisco C. Xavier, no século XX. Para o antropólogo Bernardo Lewgoy, Chico foi o grande mediador entre o Espiritismo e a cultura brasileira.
Bibliografia
KARDEC, Allan. Viagem Espírita de 1862 e outras viagens de Kardec, p. 191.
MACHADO, Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo. Niterói: Lachátre, 1996. P. 63.
MIGUEL, Sinuê Neckte. Espiritismo fin de siècle: a inserção do Espiritismo no Rio Grande do Sul (1896-1898). In. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano II, n. 4, Mai. 2009 –
Disponível em: http://www.dhi.uem.br/gtreligiao - Artigos
ISAIA, Artur Cesar. Loucura Coletiva? In. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, junho de 2008. P. 20-25.
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