Datas comemorativas representam, via de regra, acontecimentos que nem sempre encontram motivos reais e históricos que as justifiquem. O “dia do índio” se ajusta bem nesse argumento. O dia 19 de abril passou a ser comemorado no Brasil em 1944, através de uma determinação de Getúlio Vargas, já no final do Estado Novo. De lá para cá, renovam-se as manifestações bucólicas, principalmente nas escolas, onde as crianças tradicionalmente recebem o desenho de um “indiozinho” cheio de penas na cabeça e na cintura para pintar. Idilicamente, construíu-se um índio mitológico, por vezes, distante do personagem real, extirpado de sua cultura original, violentado pelo branco que, num ímpeto belicoso, toma suas terras e sua alma.
Calcula-se que na época em que a frota cabralina realizou o “achamento” (termo usado por Pero Vaz de Caminha) do Brasil, aqui existia uma população indígena que variava entre 1 a 5 milhões . De lá para cá, o decréscimo estatístico representou um verdadeiro genocídio. Em 1957, o etnólogo Darcy Ribeiro, em seus estudos calculava, na segunda metade do século XX, uma população indígena entre 70 mil a 100 mil indivíduos. Na prática, se colocássemos toda a população indígena existente no Brasil, atualmente, no estádio do Maracanã, que possui capacidade para 200 mil pessoas, sobraria muitos lugares.
Estima-se que só na costa litorânea do Brasil do século XVI, vivessem aproximadamente um milhão de Tupinambás . Entretanto, o contexto de expansão marítima-européia, dos séculos XV e XVI, exigia que os nativos fossem combatidos, pelo menos, todos aqueles que resistiram à escravização do trabalho colonial. O controle territorial da faixa litorânea representou, inicialmente, o processo centenário, que – historicamente – vem se efetivando de usurpação do território indígena no Brasil. Violentados, reduzidos à escravidão e, por fim, dizimados. Isso faz lembrar a famosa frase do general Custer, na marcha para a conquista do Oeste americano: “Índio bom é índio morto.”
O tormento dos nativos brasileiros com a ferocidade européia não foi exclusividade só nossa. Três anos após ter descoberto a América, Cristóvão Colombo dirigiu pessoalmente a campanha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana: “um punhado de cavaleiros, duzentos infantes e alguns cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios” O próprio Colombo havia nominado de “índios”, os nativos que havia encontrado quando, ao chegar na América, pensou ter circunavegado a Europa e chegado as Índias. O navegar genovês morreu sem haver descoberto o seu erro.
A rigor, o processo histórico se estrutura nas mudanças e nas permanências. Se, no entanto, é relativamente fácil identificarmos as mudanças, o mesmo não ocorre com as permanências. Essas são, muitas vezes, tornadas “invisíveis”, ou mesmo lúdicas no cotidiano. Os índios não se integraram culturalmente ou socialmente à sociedade brasileira e, por outro lado, também enfrentam enormes dificuldades para manter sua cultura original. A invasão de terras indígenas, ainda hoje, é fruto de uma cultura exploratória sedimentada pela racionalidade portuguesa colonial, cujos reflexos insistem em permanecer na mentalidade contemporânea.
Pelo menos, hoje já não se discute mais se os índios possuem ou não alma. Todavia, muitos índios espalhados pela imensa territorialidade brasileira, acabam se proletarizando ou virando mendigos, sentados em uma calçada qualquer à espera de doações para sobreviverem, distantes de sua origem comunal. Sendo assim, o “achamento” do Brasil consubstanciou o genocídio das populações indígenas e sua conseqüente fragmentação sócio-cultural e territorial.
Sobre as demarcações de terras, vale lembrarmos que em 1996, o então sociólogo-presidente, Fernando H. Cardoso, em seu decreto 1.775/96, vulnerabilizava a posse das terras indígenas, na medida em que facilitava aos posseiros interferirem na definição dos limites das áreas a serem demarcadas. . No governo de FHC foram realizadas 63 demarcações de terras indígenas, sendo que 254 haviam sido demarcadas em governos anteriores, restando ainda 239 a demarcar. Esses números mostram, ainda hoje, que a questão indígena está longe de ser apreciada em seu lídimo valor.
O dia 19 de abril, a semelhança do 13 de maio, do 20 de setembro, do 15 de novembro, e de tantas outras datas comemorativas, quase sempre comemoradas num espírito de superficialidade, deveriam servir para remeter o cidadão e a sociedade a um momento de reflexão crítica e revisão de seu processo histórico. Somente assim poderemos transitar para um nível mais elaborado de lucidez social, em face dos desafios que persistem, na base estrutural da nossa civilização e do nosso país.
Referências
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 20ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
HECK, Egon Dionísio. 500 Anos de conquista e dominação. In. RAMPINELL, Waldir José, OURIQUES, Nildo Domingos (Orgs) Os 500 anos. A conquista interminável. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
LOPEZ, Luiz Roberto. A Aventura dos Descobrimentos. Porto Alegre: Novo Século, 1995.
MAESTRI, Mário. Os Senhores do Litoral. Conquista Portuguesa e Agonia Tupinambá no Litoral Brasileiro. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 1994.
MELATTI, Júlio Cezar. Índios no Brasil. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1994.
RAMPINELL, Waldir José, OURIQUES, Nildo Domingos (Orgs) Os 500 anos. A conquista interminável. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.
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