O pecado foi um eficiente instrumento na consolidação de um discurso culpabilizador e de uma ‘cultura do medo.(1) A construção de tal discurso manifestou-se em diversas épocas, como mecanismo ideológico e punitivo, que buscava dar sentido ao problema da existência do mal e aos sofrimentos humanos. A problemática do pecado começa, é bem verdade, com referência ao “primeiro pecado”. No livro do Gênese, no Antigo Testamento, narra-se conforme as tradições do povo hebreu, o famoso mito de Adão e Eva e a queda do paraíso.
Ora, ao comer o fruto da árvore do bem e do mal, o casal teria sido, então, expulso do paraíso por desrespeito ao Criador, projetando, como herança natural para os seus descendentes, ou seja, para toda a raça humana, os efeitos de seu ato. É curioso notarmos que Jesus nada falou sobre o pecado original. Foi Clemente de Alexandria (século II d.C.) quem relacionou o primeiro pecado com a descoberta do sexo por Adão e Eva. Mais tarde, entretanto, é que surgiu a denominação “original” para esse “pecado”, dada por Santo Agostinho (354-430) que identificou o pecado original com o desejo sexual e não, somente com o sexo. Santo Agostinho, no início do século V, definiu o pecado como: “uma palavra, uma ação ou um desejo contrário à lei divina”.(2)Em suas Confissões, situa a problemática sexual da humanidade como algo "impuro", contrário - paradoxalmente - a Lei Divina. É evidente, para quem já leu parte dos escritos de Agostinho, seus conflitos pessoais ligados a sexualidade.
Nos séculos seguintes, ocorre todo um desdobramento dessa idéia do pecado original no seio de cristãos que buscavam se isolar para fugir dos prazeres do sexo, na expectativa de purificar o corpo e a alma, buscando superar a ira, a agressividade, a inveja, a avareza. Segundo a historiadora italiana Carla Casagrande: “Eles tinham que se concentrar em Deus. (...) mas a libertação das coisas mundanas podiam cair na própria soberba, que era o maior pecado de todos (...)” (3) Desses grupos de cristão que aparecem na África no Norte, próximo ao deserto, e na Ásia Menor, surgem, nos mosteiros, entre os séculos IV e XII, o desdobramento daquele pecado original para os denominados sete (as vezes oito) pecados capitais. Foi, entretanto, no final do século VI que o Papa Gregório Magno, faz interessante analogia, descrevendo a alma como sendo uma “fortaleza” atacada por um grande exército liderado por sete pecados principais: a soberba (o orgulho é o principal líder) seguido pela vanglória inveja, a avareza, a ira, a acídia (tristeza), a gula e a luxúria.
Como a Doutrina Espírita examina essa questão do pecado? Há concordância em relação a idéia do “pecado original”? Diante de tais questões, encontramos em Léon Denis a seguinte afirmação: “A palavra pecado não exprime, em si mesmo, senão uma idéia confusa.” Essa confusão esta vinculada justamente a falta de argumentos plausíveis e racionais envolvendo essa questão, ou melhor, a questão confusa que se forjou relacionando o problema do pecado com a idéia de “castigo divino”. Léon Denis elucida: “A violação da lei acarreta a cada ser um amesquinhamento moral, uma reação da consciência, que é uma causa de sofrimento íntimo e uma diminuição das percepções animais. Assim, o ser pune-se a si mesmo. Deus não intervém, porque Deus é infinito; nenhum ser seria capaz de lhe produzir o menor mal.”(4)
As palavras nos enganam. O termo “pecado” está, historicamente, impregnado de uma acepção condenatória que visa insuflar temor no ser humano. Kardec, na introdução de O Livro dos Espíritos nos adverte no sentido de evitarmos, no campo doutrinário do espiritismo, usar palavras ambíguas que já carregam consigo uma acepção amplamente difundida, consolidada cultural e mentalmente. Cremos que essa advertência pode ser estendida para a palavra “pecado”. Não há, na visão espírita, um “pecado original”, quer aquele da tradição agostiniana, ou do mito de Adão e Eva. Essa narrativa trata, evidentemente, de uma fábula, amplamente difundida e ordenada, no Ocidente cristão, para interesses que visavam (e ainda visam) atrelar a idéia de salvação às práticas confessionais, justificando o status quo dominante de certas religiões.
Essa racionalidade foi muito bem construída para nos prender a uma idéia de “culpa”, da qual, por sermos humanos, somos naturalmente herdeiros. A “culpa” e o “temor” são construções da mentalidade medieval, e justificam o papel do poder temporal. O espiritismo não reproduz tal mentalidade. Se quisermos fazer uma análise espírita dessa questão deveremos compreender a vida como um processo dinâmico de experiência para o espírito. A evolução espiritual passa, então, a ser forjada pelo exercício da liberdade, associada à lei de causa e efeito e à lei da reencarnação. Nesse sentido o “erro” ou as “faltas” humanas são dimensões “naturais” do processo de aprendizagem do espírito, para fixar os valores reais da vida, que lhe cumpre atingir: o bem, o amor.
A origem dos erros humanos, entretanto, pode ser compreendida como o “ascendente primitivo que os instintos animais devem ter exercido, de início, sobre as aspirações da alma.”(5) Sendo assim, a “serpente tentadora” não é outra coisa senão a personificação dos desejos ou a solicitação dos instintos e sentimentos mais ancestrais do espírito. Do ponto de vista mais restrito, o “egoísmo”, pode ser visto como o “carro-chefe” que, associado ao “orgulho” desencadeia uma série de outros sentimentos que, embora façam parte da experiência humana, representam núcleos em potências pouco evoluídos, fontes de energia afastados do amor e do bem.
A Lei Divina, estudada na 3ª parte de O Livro dos Espíritos, consubstancia as aquisições no Bem, nos ângulos positivos da vida. Portanto, podemos dizer que ao longo de seu processo evolutivo, o espírito humano vem construindo um arcabouço psicológico ou núcleos em potenciais(6) que parte das faixas instintivas para as aquisições nobres. Nesse sentido: egoísmo e solidariedade, soberba e humildade, modéstia e ostentação, ira e brandura, entre tantos outros sentimentos, são estrutura construídas (“erro e acerto”) ao longo do tempo e que serão devidamente laboradas ao sabor da “força mesma das coisas” que conduz o homem para a fatalidade do Amor.
O erro é um instrumento pedagógico de aprendizagem, que utilizamos ao longo de nossa historicidade espiritual. Dessa forma, devemos “desconstruir” a idéia de “culpa” e construir a idéia de “responsabilidade,” que instrumentaliza o indivíduo a ser agente criador (expressão divina) de seu progresso ético-espiritual.
Notas
(1)Cf. José R. Macedo. Paixões da alma medieval. Artigo. In. Segundo Caderno Cultura. Zero Hora. 04/09/2004.
(2)AGOSTINHO, Santo. Confissões. Coleção Os pensadores. Abril Cultura, 1984. Livro II. Os pecados da adolescência. Item 5: A causa ordinária do pecado.
(3)Cf. Carla Casagrande. O pecado desde as origens. Entrevista ao Caderno de Cultura. Zero Hora, 18/09/2004.
(4)DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo. 8ª ed. Feb. Página 85.
(5)KARDEC, Allan. Revista Espírita – novembro/ 1867. Edicel. Página 356.
(6)ANDRÉA, Jorge. Forças Sexuais da Alma. 3ª ed. FEB. Página 46.
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Excelente análise, tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista espírita. Tenho apreciado e aprendido muito com a leitura dos seus textos. Continue nos brindando com material para reflexão e estudo.
ResponderExcluirPrezado Carlos, é imperioso que, enquanto espíritas e historiadores, possamos examinar sob um âmgulo crítico os elementos culturais, mentais e doutrinários que ai estão.
ResponderExcluirAbraços, Jerri Almeida