Maurice H. Jones
Segundo
o filósofo e pacifista britânico Bertrand Russel, a Filosofia
é algo que se situa entre a Teologia e a Ciência .
Todo o conhecimento definido
pertence à Ciência
e todo dogma ,
pertence à Teologia .
Mas, entre a Teologia
e a Ciência existe um
território de ninguém ,
onde as nossas reflexões ,
as nossas idéias , os nossos mais simples pensamentos ,
transitam sem dificuldades ,
sem formalismos
– esta terra de ninguém
é uma terra de todos :
é o chão da Filosofia.
O mundo , indaga ele, está dividido em
espírito e matéria ? Se assim
é, o que é o espírito
e o que é a matéria ?
Quem está sujeito
a quem ? Será o espírito
dotado de alguma independência ? Possui o universo
alguma unidade ou
propósito e se possui estará ele
evoluindo a caminho da sua finalidade ?
Será que existem mesmo
leis da natureza
ou só
acreditamos nelas devido ao nosso amor pela ordem ?
Existe alguma maneira de viver
que seja mais
nobre ou
menos nobre ?
Em que
consistiria o modo de vida nobre e como realizá-lo?
Seria
o Espiritismo numa resposta inteligente a estas profundas questões de ordem
filosófica? Vários elementos que estruturam o pensamento espírita respondem
positivamente a esta indagação e o credenciam como um modo moderno, ventilado e
revolucionário de percepção do homem e do mundo, bem como precioso instrumento
pedagógico para o autoconhecimento e controle racional da própria evolução.
O grande problema
da ética como
estudo racional
da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo , como pode
ser o homem
persuadido a ser bom .
A esta intrigante questão o Espiritismo responde com a idéia da evolução e,
sobretudo, com os princípios da reencarnação e da causalidade que oferecem substrato racional
riquíssimo para a adoção consciente de um
modelo comportamental fundamentado
na tolerância racial
e social, configurando assim a ética natural, sonhada por Sócrates, capaz de
construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos.
Na
visão do filósofo J.Herculano Pires, o Livro dos Espíritos, veículo
privilegiado destas ideias inovadoras, mesmo não tendo sido elaborado em
linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela
todo um complexo e amplo sistema de filosofia. É, portanto, o arcabouço filosófico do Espiritismo.
Como
se vê, Kardec não foi um filósofo na acepção mais usual do termo, nem
exatamente um cientista. Foi, isto sim, e acima de tudo, um extraordinário
pedagogo, qualificação essencial para a compreensão e propagação do Espiritismo
até os dias atuais.
A
precoce percepção de que somente a educação e o amor poderiam encaminhar
solução para os problemas sociais e morais do seu tempo fez de kardec herdeiro natural de uma magnífica linhagem de
educadores que começa, no século XVII, com Comenius, o pai da didática moderna,
passa, no séc. XVIII, pelo filósofo J.J. Rousseau e seu “Emílio”, terminando no grande e sábio mestre da educação como ato
de amor, J.H. Pestalozzi.
Como
um estuário das correntes de idéias mais generosas e libertárias que irrigaram
a cultura da Europa desde a renascença, Kardec chegou à maturidade equipado,
moral e intelectualmente, para a grande tarefa de sua vida: a construção de uma
síntese conceptual do mundo moderno, a Codificação Espírita, centrada na idéia
da evolução e na realidade e primado da vida espiritual.
Esta
extraordinária façanha, resultado do trabalho de homens encarnados,
assessorados por homens desencarnados, tornou-se possível, no tempo e no espaço,
pela feliz conjugação de fatores políticos, sociais, econômicos e culturais
aliados à sensibilidade, lucidez e coragem do mestre educador Hippolyte Léon
Denizard Rivail cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando neste 3 de
outubro de 2004.
Segundo
muitos historiadores, o Renascimento e a
Reforma Luterana são as duas mais importantes nascentes da história moderna.
Uma libertou o espírito e embelezou a vida, oferecendo ao homem o direito à
felicidade aqui na terra; a outra estimulou a crença e o senso moral. As idéias
contidas no bojo destes movimentos, propagadas pelas facilidades oferecidas
pela descoberta de Gutenberg e dinamizadas pela revolução conceptual produzida
pela descoberta da América e pela revelação de Copérnico, varreram a Europa a
partir do final do Séc. XV e início do Séc. XVI, desencadeando uma irresistível avalanche de mudanças,
crises e conflitos ideológicos num mundo
cansado do repouso medieval e ansioso pela descoberta de novos mundos, novos
caminhos, novas idéias.
No
Século XVIII o Renascimento cede espaço para o Iluminismo que, tendo razão e
liberdade como estandarte, enfrenta a superstição e a opressão, produzindo
significativa redução de importância da Igreja e influindo por seus princípios
na independência dos Estados Unidos e na Revolução Francesa, fatos que, entre
outros, assinalam o colapso da França feudal, uma importante ampliação das
liberdades civis e a transição da Idade Moderna para a Contemporânea.
Se
acrescentarmos a este sintético painel o crescimento exponencial da população a
partir de 1750 em função de avanços na produção agrícola, higiene e medicina e
mais a revolução industrial iniciada na Inglaterra provocando intenso
deslocamento das populações rurais para as cidades com todo o conjunto de
conseqüências sociais, políticas e econômicas, encerraremos o século das luzes
já experimentando um certo cansaço da arrogância racionalista e criando espaço
para o surgimento do Romantismo que valorizando o sentimento caracteriza o século
XIX, o século de Kardec.
O
nascimento em 1804 e a formação intelecto-moral
do futuro Codificador do Espiritismo ocorre em plena era de Napoleão
que, no mesmo ano é coroado Imperador e
promulga o Código Civil dos Franceses ou “Código de Napoleão”, de importância
decisiva no direito ocidental e, conforme o próprio Imperador, sua maior obra.
Kardec
era um homem da sua época, cosmopolita, sensível, arguto e naturalmente aberto
às influências mais nobres que a história e a experiência lhe ofereciam. Enquanto
aprimorava sua formação no Instituto de Pestalozzi em Yverdon e, depois, na
vida profissional, como educador, outros acontecimentos ocorriam, com enorme significado
e presença na sua futura e máxima obra.
Além
dos importantes desdobramentos geopolíticos do período napoleônico, podemos
identificar as revolucionárias teorias evolucionistas de Lamark e Darwin de
enorme repercussão, a Filosofia
Positivista de Auguste Comte e, até, o Manifesto Comunista de Marx e Engels,
produto da agitação social da nova classe operária.
Neste
cenário imponente e desafiador, buscava-se afanosamente um novo modelo
conceptual para o tempo novo que surgia, pois os paradigmas vigentes haviam
esgotado a capacidade de oferecer segurança e identidade. É então que, já maduro e sensível às
inquietações do seu mundo e à convocação do mundo espiritual, Kardec aceita a
responsabilidade de liderar o grande esforço para construção de uma nova visão
de homem e de mundo, humanista e dinâmica, na qual razão e sentimento pudessem,
harmonicamente, buscar a verdade.
E
assim, como uma flor tardia da primavera iluminista, nascida no solo adubado
pelo romantismo de Rousseau e Pestalozzi, surgiu o Espiritismo que, com seu
“humanismo espiritocêntrico”, busca superar, dialeticamente, o conflito entre o
pensamento medieval centrado em Deus e o humanismo organocêntrico da renascença
e iluminismo. A cosmovisão inovadora e sintética oferecida por Karde ao mundo
nascia, robusta e perturbadora, desafiando os paradigmas senis e anunciando, no
dizer do físico inglês Oliver Lodge, “uma nova revolução copérnica”.
25/09/2004
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