Jerri Almeida
I-A interpretação como problema
Compreender a obra de um determinado autor requer um mergulho
responsável, ao longo do tempo, no seu estudo e reflexão, onde o estudioso possa
exercer a delicada tarefa de transitar da doxologia (opinião), para a
epistemologia (conhecimento). Significa, portanto, que o estudo de uma obra em
particular, de um pensador, ou de uma doutrina, exige o deciframento, o mais
fiel possível, do conjunto das ideias formuladas. Algo como: uma arqueologia do
saber.
Seria ingenuidade, todavia, supor a neutralidade absoluta do
sujeito/leitor/pesquisador, nesse processo de “aproximação da verdade”. A parcela de subjetividade do sujeito
responderá, em maior ou menor grau, pela proximidade ou distanciamento da
essência de seu objeto de estudo. Assim, o tratamento dos dados, as operações
específicas, permite uma relação mais objetiva, poupando o sujeito das
artimanhas, armadilhas ou tropeços no suposto conhecimento sobre algo.
Em Obras Póstumas, Kardec escreveu:
É imprescindível o
direito de exame e de crítica e o Espiritismo não alimenta a pretensão de
subtrair-se ao exame e à crítica, como não tem a de satisfazer a toda gente.
Cada um é, pois, livre de o aprovar ou rejeitar; mas para isso, necessário se
faz discuti-lo com conhecimento de causa.
(Grifos meus)
(Ligeira Resposta
aos Detratores do Espiritismo. Obras
Póstumas, 1ª Parte.)
Não são poucos os conflitos envolvendo o problema
das interpretações sobre aspectos doutrinários. Sabemos que o Espiritismo não
foi ditado completo, nem imposto à crença cega. Cabe ao ser humano a observação
dos fatos, o trabalho de estudar, comentar e comparar a fim de tirar suas
próprias ilações e aplicações. No entanto, um dos primeiros problemas que se
apresenta é o das interpretações dos textos. Mas, o que é interpretar?
A rigor, podemos definir dois sentidos para o ato
de interpretar um texto:
a) a interpretação como desvelamento do seu sentido
original;
b) a interpretação como construção de significados
pessoais.
O primeiro consiste na ideia de que interpretar é
buscar o sentido atribuído ao texto pelo próprio autor. Desta forma, a boa
interpretação seria aquela que busca descobrir o que o autor (ou autores, no
caso dos espíritos) queria dizer quando escreveu sobre determinado assunto. É o
esforço em buscar o seu sentido original.
No segundo caso, busca-se admitir que quem dá o
significado para o texto é quem o lê, e não quem o escreveu. Nesse caso, toda
interpretação termina sendo um processo essencialmente subjetivo, muito
vinculado ao que os gregos chamavam de “doxologia”, ou seja, a livre opinião. E
toda interpretação, em tese, poderia ser aceita.
Entretanto, ao estudarmos os livros da Doutrina
Espírita, será que toda e qualquer interpretação será válida? Allan Kardec, em O Livro dos Médiuns, quando trata dos
Sistemas, analisando os fenômenos mediúnicos que originaram o Espiritismo,
assim se pronunciou:
Quando foram
averiguados por testemunhos irrecusáveis e através de experiências que todos
puderam fazer, aconteceu que cada qual os interpretou a seu modo, de acordo com
suas ideias pessoais, suas crenças e seus preconceitos. Daí, o aparecimento dos
numerosos sistemas que uma observação mais atenta deveria reduzir ao seu justo
valor.
(Allan Kardec. O Livro dos Médiuns.
Cap. 4, item 36. )
Quando cada um interpreta do seu modo, como
observou Kardec, abrem-se brechas para as ideias pessoais prevalecerem sobre o
conteúdo original das obras. Isso representa sempre uma temeridade, pois abre
espaço para que os interesses individuais se destaquem. Surgem então erros de
interpretação, ideias que agregam ao Espiritismo elementos de outras doutrinas
espiritualistas, descaracterizando o seu ensino e sua prática.
Já em sua época, Kardec se preocupava com o que
seria publicado em temos de Espiritismo. Mais ainda, quando se tratava de
livros mediúnicos. Os critérios utilizados por ele, para analisar esses textos,
eram bastante rígidos. Não é demais lembrarmos que aceitar tudo o que venha dos
espíritos, ou de qualquer outra fonte, sem o devido exame e cautela, é
enveredar por um caminho perigoso e cheio de armadilhas. Analisando as chamadas
comunicações apócrifas, o Codificador assim se expressou:
De fato, a
facilidade com que algumas pessoas aceitam tudo o que vem do mundo invisível,
sob o pálio de um grande nome, é que anima os Espíritos embusteiros. A lhes
frustrar os embustes é que todos devem consagrar a máxima atenção; mas, a tanto
ninguém pode chegar, senão com a ajuda da experiência adquirida por meio de um
estudo sério. Daí o repetirmos incessantemente: Estudai, antes de praticardes,
porquanto é esse o único meio de não adquirirdes experiência à vossa própria
custa.
(Allan Kardec.
O Livro dos Médiuns. Cap. 31, Comunicações apócrifas, XXXIII.)
Allan Kardec enfatiza o estudo como forma de
discernimento do que o Espiritismo aceita e daquilo que ele se distancia.
Assim, o conhecimento das Obras Básicas, nunca será demais salientar,
representa base segura para o entendimento da Doutrina. Todavia, mesmo assim é
necessário ter cautela com as interpretações, muitas vezes apressadas, que se
fazem também sobre elas.
Interpretar não significa modificar os
fundamentos da Doutrina Espírita. Na verdade, a interpretação é um
esforço da inteligência por “encontrar um sentido oculto”, que não está,
necessariamente, claro. Logo, a capacidade de interpretação é inerente ao ser
humano. Deveremos usá-la de forma responsável e
compromissada com o conjunto da teoria.
Essa relação dialética se processa
também, no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo
se distancie das leituras simplistas, onde, muitas vezes, se busca afirmar o
conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia
tradicional, pelo primarismo religioso, grilhões que produzem crenças
superficiais. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou
a dialogar com a
fonte das informações usando os instrumentos da razão, da lógica, e do bom
senso.
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