sexta-feira, 12 de abril de 2013

SEM DOGMA, NEM MISTÉRIOS!


Jerri Almeida

A relação ou a proximidade entre fé e razão sempre representou uma fronteira de difícil diálogo, no território do conhecimento. Aparentemente, fé e razão são elementos dicotômicos e, portanto, divergentes, pois o primeiro carrega consigo uma profunda carga religiosa, por vezes associada ao mistério,  enquanto o segundo, apresenta-se no âmbito do saber aberto, próprio da filosofia e da ciência.
O diálogo entre fé e razão somente é possível quando desvelamos novos horizontes e conceitos sobre a vida e a natureza humana, onde tais fronteiras começam a diluir-se, tornando-se mais tênues.
Para o Espiritismo, a fé deve estar baseada na capacidade de conhecimento e compreensão, que penetra a superfície e desvela, nos limites da dimensão evolutiva do espírito, o âmago da vida. O filósofo Erich Fromm observou, em um de seus escritos, que: “Enquanto a fé racional é o resultado da atividade interior da pessoa, em pensamento ou sentimento, a fé irracional é a submissão a determinada coisa que se aceita como verdadeira, independentemente de sê-lo ou não.”[1]  Ele observa ainda, que o elemento essencial de toda fé irracional, é o seu caráter passivo.
Allan Kardec, em seus vários textos, trata da fé espírita imprimindo-lhe um caráter dinâmico. Em sessão mediúnica na Sociedade Parisiense, ele tem a oportunidade de dialogar, em certa ocasião, com o espírito de um padre que desencarnara adversário do Espiritismo. O diálogo é conduzido por Kardec com a permissão do mentor do médium. Ao dialogarem sobre a problemática da crença, eis que afirma o codificador:

Por outro lado o Espiritismo (...) não impõe uma crença cega; quer que a fé se apóie na compreensão. É principalmente nisto, senhor padre, que divergimos na maneira de ver. Assim, a cada um deixa ele [o Espiritismo] inteira liberdade de exame, em virtude deste princípio que, sendo a verdade uma, mais cedo ou mais tarde, deve sobrepô-lo ao que é falso, e um princípio baseado no erro cai pela força das coisas. As ideias falsas, postas em discussão mostram seu lado fraco e se apagam ante o poder da lógica. Essas divergências são inevitáveis no começo; são mesmo necessárias, porque ajudam a depuração e o assento da ideia fundamental; e é preferível que se produzam desde o começo, pois a doutrina verdadeira delas se desembaraça mais cedo. Eis porque sempre dissemos aos adeptos: Não vos inquieteis com as ideias contraditórias, que podem ser emitidas ou publicadas. Vêde já quantas morreram no nascedouro; quantos escritos dos quais não mais se fala! Que buscamos? O triunfo, de qualquer jeito, de nossas ideias? Não, mas o da verdade. Se, no número das ideias contrárias, algumas forem mais verdadeiras que as nossas, elas vencerão e deveremos adotá-las; se forem falsas, não poderão suportar a prova decisiva do controle do ensino universal dos Espíritos, único critério da ideias que sobreviverá.[2] [Grifos meus]

O texto sinaliza a nosso juízo, com bastante clareza, a defesa de uma fé que se apóia na “liberdade de exame” ou no direito de análise, para uma melhor compreensão dos fatos, assentados nas evidências e na demonstração. É uma fé que se fortalece na investigação e na análise rigorosa dos fenômenos espirituais. Podemos dizer que dessa capacidade de análise, surge uma crença justificada na razão. O efeito mais imediato disso é uma certeza, baseada na compreensão, ou no possível desvelamento, das leis naturais e morais da vida.
Avançando em seus argumentos, Kardec, no referido texto, afirma que a perenidade do conhecimento e a força de certas ideias traduzem o triunfo da verdade. Essa verdade, por sua vez, está respaldada no que Kardec chamou de “controle do ensino universal dos Espíritos”. Na prática significa que nenhuma verdade aparece isoladamente. A análise do conteúdo e significado das manifestações mediúnicas, por exemplo, foram obtidas por Kardec através de diferentes médiuns em diferentes localidades.
Tais manifestações, antes de serem aceitas como verdadeiras, eram submetidas a uma análise comparativa para que se evidenciasse o consenso e o caráter de universalidade do ensino.[3] Allan Kardec, utilizando-se de diferentes médiuns, propunha-lhes temas pertinentes a certos problemas filosóficos, científicos e morais, com o objetivo de colher esclarecimentos ou ensinamentos compatíveis com a natureza dos assuntos investigados.
A análise de Kardec sobre o conteúdo das comunicações era rigorosa. Todo conteúdo que suscitasse dúvidas era submetido a novas indagações utilizando-se o mesmo ou outros médiuns que não se conhecessem. O conteúdo das mensagens também sofria criteriosa análise, pois Kardec sempre ressaltou que o texto se impunha, não pelo seu autor, mas pelo vigor de seu conteúdo. O triunfo da verdade, nesse sentido, é também o triunfo da racionalidade, em contraposição aos dogmas e mistérios que obscurecem o livre exame. 


Notas

[1] FROMM, Erich. A Revolução da Esperança. 5ª. Ed. Trad. Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. Pág. 31-32.
[2] KARDEC, Allan. Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos espíritos. Revista Espírita. Outubro de 1865. P. 295. Edicel.
[3] TEIXEIRA, Cícero M.  O Método Kardequiano. In. A Reencarnação (Revista da Federação Espírita do RGS), no. 403, 1989. Páginas: 29,30 e 31.

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