Jerri Almeida
A relação ou a proximidade entre fé e razão sempre
representou uma fronteira de difícil diálogo, no território do conhecimento.
Aparentemente, fé e razão são elementos dicotômicos e, portanto, divergentes,
pois o primeiro carrega consigo uma profunda carga religiosa, por vezes
associada ao mistério, enquanto o
segundo, apresenta-se no âmbito do saber aberto, próprio da filosofia e da
ciência.
O diálogo entre fé e razão somente é possível quando
desvelamos novos horizontes e conceitos sobre a vida e a natureza humana, onde
tais fronteiras começam a diluir-se, tornando-se mais tênues.
Para o Espiritismo, a fé deve estar baseada na
capacidade de conhecimento e compreensão, que penetra a superfície e desvela,
nos limites da dimensão evolutiva do espírito, o âmago da vida. O filósofo
Erich Fromm observou, em um de seus escritos, que: “Enquanto a fé racional é o
resultado da atividade interior da pessoa, em pensamento ou sentimento, a fé
irracional é a submissão a determinada coisa que se aceita como verdadeira,
independentemente de sê-lo ou não.”[1] Ele observa ainda, que o elemento essencial
de toda fé irracional, é o seu caráter passivo.
Allan Kardec, em seus vários textos, trata da fé
espírita imprimindo-lhe um caráter dinâmico. Em sessão mediúnica na Sociedade
Parisiense, ele tem a oportunidade de dialogar, em certa ocasião, com o
espírito de um padre que desencarnara adversário do Espiritismo. O diálogo é
conduzido por Kardec com a permissão do mentor do médium. Ao dialogarem sobre a
problemática da crença, eis que afirma o codificador:
Por outro
lado o Espiritismo (...) não impõe uma crença cega; quer que a fé se apóie na compreensão. É principalmente nisto,
senhor padre, que divergimos na maneira de ver. Assim, a cada um deixa ele [o
Espiritismo] inteira liberdade de exame, em virtude deste princípio que, sendo
a verdade uma, mais cedo ou mais tarde, deve sobrepô-lo ao que é falso, e um
princípio baseado no erro cai pela força das coisas. As ideias falsas, postas
em discussão mostram seu lado fraco e se apagam ante o poder da lógica. Essas
divergências são inevitáveis no começo; são mesmo necessárias, porque ajudam a
depuração e o assento da ideia fundamental; e é preferível que se produzam
desde o começo, pois a doutrina verdadeira delas se desembaraça mais cedo. Eis
porque sempre dissemos aos adeptos: Não vos inquieteis com as ideias
contraditórias, que podem ser emitidas ou publicadas. Vêde já quantas morreram
no nascedouro; quantos escritos dos quais não mais se fala! Que buscamos? O
triunfo, de qualquer jeito, de nossas ideias? Não, mas o da verdade. Se, no
número das ideias contrárias, algumas forem mais verdadeiras que as nossas,
elas vencerão e deveremos adotá-las; se forem falsas, não poderão suportar a
prova decisiva do controle do ensino universal dos Espíritos, único critério da
ideias que sobreviverá.[2]
[Grifos meus]
O texto sinaliza a nosso juízo, com bastante clareza, a
defesa de uma fé que se apóia na “liberdade de exame” ou no direito de análise,
para uma melhor compreensão dos fatos, assentados nas evidências e na
demonstração. É uma fé que se fortalece na investigação e na análise rigorosa
dos fenômenos espirituais. Podemos dizer que dessa capacidade de análise, surge
uma crença justificada na razão. O efeito mais imediato disso é uma certeza,
baseada na compreensão, ou no possível desvelamento, das leis naturais e morais
da vida.
Avançando em seus argumentos, Kardec, no referido
texto, afirma que a perenidade do conhecimento e a força de certas ideias
traduzem o triunfo da verdade. Essa verdade, por sua vez, está respaldada no
que Kardec chamou de “controle do ensino universal dos Espíritos”. Na prática
significa que nenhuma verdade aparece isoladamente. A análise do conteúdo e
significado das manifestações mediúnicas, por exemplo, foram obtidas por Kardec
através de diferentes médiuns em diferentes localidades.
Tais manifestações, antes de serem aceitas como
verdadeiras, eram submetidas a uma análise comparativa para que se evidenciasse
o consenso e o caráter de universalidade do ensino.[3]
Allan Kardec, utilizando-se de diferentes médiuns,
propunha-lhes temas pertinentes a certos problemas filosóficos, científicos e
morais, com o objetivo de colher esclarecimentos ou ensinamentos compatíveis
com a natureza dos assuntos investigados.
A análise de Kardec sobre o conteúdo das comunicações
era rigorosa. Todo conteúdo que suscitasse dúvidas era submetido a novas
indagações utilizando-se o mesmo ou outros médiuns que não se conhecessem. O
conteúdo das mensagens também sofria criteriosa análise, pois Kardec sempre
ressaltou que o texto se impunha, não pelo seu autor, mas pelo vigor de seu
conteúdo. O triunfo da verdade, nesse sentido, é também o triunfo da
racionalidade, em contraposição aos dogmas e mistérios que obscurecem o livre
exame.
Notas
[1] FROMM, Erich. A Revolução da Esperança. 5ª. Ed. Trad.
Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. Pág. 31-32.
[2] KARDEC, Allan. Partida de um
adversário do Espiritismo para o mundo dos espíritos. Revista Espírita. Outubro de 1865. P. 295. Edicel.
[3]
TEIXEIRA, Cícero M. O Método Kardequiano. In. A Reencarnação (Revista da Federação
Espírita do RGS), no. 403, 1989. Páginas: 29,30 e 31.
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