J. Herculano Pires
"Para
se projetar na existência o ser já desenvolveu em si as potencialidades vitais
que antecedem, no plano racional-afetivo, o desenvolvimento da moralidade. A
dialética subjetiva da racionalidade com a afetividade – razão versus sentimento
– produz no ser a síntese da moral subjetiva, que engloba e disciplina as
experiências longamente desenvolvidas nos planos inferiores de sua própria
ontogênese, que estabelece nesta a realidade do em-si, esse pivô da formação ôntica, que isola o ser nascituro de
suas conotações vitais com os reinos inferiores da Natureza, permitindo-lhe o
desenvolvimento do egocentrismo. Esse ego solitário centraliza avaramente o
progresso já realizado, despertando para consciência de si mesmo. Sartre, que
negligenciou toda essa anterioridade, apresentou o ser como uma coisa limbosa e fechada em si mesma,
que se projeta na existência em virtude da necessidade ôntica da comunicação.
Essa parte metafísica de O Ser e o Nada,
de Sartre, é a primeira contradição de sua filosofia. O ser que se lança na
existência não é nem pode ser essa espécie de ovóide espiritual inconsciente,
pois determina por si mesmo essa projeção por sentir a necessidade de novas
experiências. O ato de lançar-se na existência equivale ao nascimento do ser
como criatura humana. E tanto assim que o ser se transforma numa paixão inútil, que é a paixão do homem
na vida em busca da transcendência que o fato da morte transforma em
frustração.
A
realidade viva e existencial do homem, entretanto, é real e universalmente o
contrário disso. Lançada na existência, a criatura humana amadurece nas
experiências vitais para resolver-se como existente,
um ser que existe no plano material concreto e desenvolve a sua facticidade (a
forma humana com que nasceu feito) num processo contínuo de transcendência.
Desde o seu primeiro grito, o ser se projeta na transcendência horizontal da
conquista do meio, prosseguindo na conquista do mundo e atingindo a
transcendência final sobre a morte através da ressurreição, hoje confirmada pelas
pesquisas científicas e tecnológicas.
Na
família e na escola o ser pisa os primeiros degraus de sua escalada
transcendente na existência. O egocentrismo inicial pode concentrar-se em
egoísmo no período infantil e da adolescência, arrastando-se em certos casos
mórbidos na idade madura, na forma de estagnação do infantilismo adulto de
natureza psíquica. A moralidade se apresenta então como recurso natural de
correção desse acidente. Forçado pelas exigências externas da moral social, o
ser vai aos poucos se abrindo para a descoberta íntima da moral subjetiva ou
endógena, que não pressiona de fora, mas de dentro, na sua própria intimidade.
São os dois tipos de moral classificados por Bergson: a Moral Fechada (porque fechada numa estrutural social restrita) e a Moral Aberta, individual e endógena,
pela qual a moralidade do ser se abre à comunhão humana irrestrita. Nesta moral
o ser, a princípio biopsíquico, atinge as dimensões da moralidade,
transformando-se num ser moral. A Moral Social ou fechada está sempre ligada a
uma religião estática, tradicional, seguindo a proposição de Bergson, e a Moral
Aberta ou individual corresponde às religiões dinâmicas, antidogmáticas e
racionais. A Moral e a Religião livres constituem a fase de transição do ser
moral para o ser espiritual. Neste ser o homem atinge a transcendência possível na Existência.
Diante dele se abrem as vias da Espiritualidade Superior. A morte não existe
para ele, pois vê diante dele as perspectivas do Infinito, com os mundos
felizes em que as atividades humanas são substituídas pelas atividades divinas.
Nele se cumpre a destinação do homem no após morte, com a vida em abundância a
que se referiu o Cristo, o Nirvana de Buda, o Tao de Lao Tsé e assim por
diante. Não podemos conceber, em nossos cérebros de origem animal, a grandeza
ilimitada dessa transcendência cósmica, que é o destino natural de todas as
criaturas humanas.
A
Moralidade, que Pestalozzi considerava como a única religião verdadeira,
colocando-a como o fim supremo da educação, representa o acabamento do homem
como um ser humano, o cidadão universal. Esse homem formado para universalidade
não tem pátria nem raça, mas não é um apátrida, por que todas as nações lhe
servem de pátria. Não aceita nenhuma discriminação humana, pois a Humanidade é
a sua família e a sua raça. Ele vê nos seus irmãos humanos, de todas as
condições, criaturas que avançam para a divindade, esse delta espiritual em que
deságuam todos os rios que se decantam nas corredeiras existenciais para
atingirem o verdadeiro Mar da Serenidade, que não está na Lua, mas aqui mesmo
na Terra dos Homens. E este não é um sonho de poeta lírico, nem uma alucinação
ou miragem, mas a realidade que Jesus de Nazaré nos mostrou na face líquida do
Mar da Galiléia. A pesca milagrosa dos Evangelhos se repete continuamente na
visão espiritual dos que se entregam ao fluxo existencial.
A
Moralidade, que é a Moral na sua plena atualização, transformada de potência em
ato, revela-se então como o supremo ideal humano. Uma vez atingido esse ideal,
o homem se transforma em Divindade, como a flor que se transforma em fruto.
Como
se perdem na poeira da Terra os conceitos pragmáticos da moral que a reduzem à
raiz latina de mores, de usos e costumes mantidos segundo as conveniências! A
Moral não é um sistema de regras imediatistas, como quiseram os sociólogos
materialistas. Como não é, também, uma entidade mística ou mitológica. É uma
aspiração natural do homem, no anseio de realizar toda a sua perfectibilidade
possível, segundo essa expressão de Kant. E nesse sentido é que ela paira acima
da realidade perecível, mantendo incólume através dos tempos a sua atração de
arquétipo sobre a consciência humana. Sua eternidade, sustentada pelos metafísicos
e negada pelos materialistas e pragmatistas, é relativa à duração da Humanidade
no cosmos. A concepção existencial do homem, como um ser projetado contra o
alvo da morte, uma flecha disparada no sentido de transcendência, revelou-nos a
natureza ôntica da sua eternidade. O conceito bastardo da moral como normativa
social agrada aos que desejam libertar-se dos compromissos morais para se
entregarem às atrações dos instintos animais e à irresponsabilidade das
aventuras ilusórias. A falta de visão espiritual dos pesquisadores levianos,
apegados aos fenômenos e esquecidos do búmeno,
ou seja, da causa, contribui negativamente para a deformação da moral e a
conturbação do nosso tempo. Os moralistas fanáticos, e por isso mesmo incapazes
de compreender a natureza verdadeira da moral, bem como as Ligas da Moral, respondem
pelos surtos de imoralidade nos séculos de racionalismo superficial."
Fonte: Evolução Espiritual do Homem - Na perspectiva da Doutrina Espírita
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