Uma questão desde logo se apresenta: Qual o papel do Espiritismo nesse processo de transformação social da humanidade? Duas colocações de Kardec são fundamentais para chegarmos a uma resposta. Na primeira, Kardec afirma: “Por meio do Espiritismo, a Humanidade tem que entrar numa nova fase, a do progresso moral que lhe é consequência inevitável.” E, na segunda:
"O Espiritismo não cria a renovação social; a madureza da Humanidade é que fará dessa renovação uma necessidade. Pelo seu poder moralizador, por suas tendências progressistas, pela amplitude de suas vistas, pela generalidade das questões que abrange, o Espiritismo é mais apto, do que qualquer outra doutrina, a secundar o movimento de regeneração; por isso, é ele contemporâneo desse movimento." [Grifo meu]
Não há uma contradição entre elas. Seria ingenuidade pensarmos que toda a humanidade se tornaria espírita ou se apropriaria do Espiritismo e, a partir daí, mudaria seus paradigmas de vida, operando-se a tão sonhada renovação social. Obviamente, entendemos que não foi a isso que Kardec se referiu. Ele atribui esse processo de mudança a “madureza da humanidade”, ou seja, a um estágio de superação da adolescência. Partindo da teoria espírita da evolução, Kardec nos autoriza a fazermos uma analogia entre o desenvolvimento do indivíduo e o da sociedade global. Assim como o crescimento individual se opera por fases (infância-adolescência-madureza), também a humanidade conquistaria sua maturidade passando, inicialmente, por outros estágios. Mas Kardec alude que o Espiritismo é “contemporâneo” a essa “transição” e, portanto, possui condições apropriadas para “secundar” (ajudar, auxiliar) esse processo.
Por que o Espiritismo está apto a auxiliar nessa mudança? É bom lembrarmos que o Espiritismo não se reduz a um simples discurso religioso, mas possui uma sólida base teórica que compreende: uma ciência de observação, uma filosofia otimista e, portanto, uma religião com base na fé racional, retomando a essência do pensamento cristão. Por isso, Kardec justifica, através de quatro fatores, que a Doutrina Espírita contribui para o melhoramento da humanidade:
a) Poder moralizador – Estimula pelo esclarecimento, o despertar de uma consciência muito mais lúcida e comprometida com os valores nobres da vida, tornando mais compreensível, para o ser humano, a necessidade de exercitar o princípio do: “Faça aos outros, tudo o que gostaria que os outros vos fizesse”;
b) Tendências progressistas – O Espiritismo acompanha o desenvolvimento da ciência, e aproveita toda a contribuição que esta lhe ofereça;
c) Amplitude de idéias – Oferece uma cosmovisão da vida, na medida em que associa: ciência, filosofia e religião;
d) Generalidade das questões que abrange – Estuda o mundo físico e o mundo espiritual, portanto, faz a confluência entre o físico e o metafísico, o corpo e o espírito, o individual e o coletivo.
Mas Kardec tem o cuidado, compreendendo a complexidade desse processo, de afirmar que:
"Fora presumir demais da natureza humana supor que ela possa transformar-se de súbito, por efeito das idéias espíritas. A ação que estas exercem não é certamente idêntica, nem do mesmo grau, em todos os que as professa. Mas, o resultado dessa ação, qualquer que seja, ainda que extremamente fraco, representa sempre uma melhora."
Se o conhecimento espírita oferece valiosos elementos para auxiliar o aperfeiçoamento dos indivíduos, também é verdade, que esse é um processo pessoal e que cada um possui seu ritmo próprio. As crises, os conflitos, as angústias e sofrimentos, também possuem o papel de estimular essas renovações. Essa mudança é naturalmente lenta, pois sedimentada numa nova ética comportamental. Sobre isso, Léon Denis foi enfático ao considerar: “A influência do Espiritismo no progresso da sociedade se processa, não no estímulo à luta de classe, mas no campo íntimo, ampliando os horizontes sobre a natureza humana e sua destinação.”
É comum pensar-se que as mudanças sociais se operam, tão somente, por revoluções, decretos políticos, ou por abalos apocalípticos. O Espiritismo, no entanto, coloca o sujeito no centro dessa questão, atribuindo-lhe a responsabilidade por aperfeiçoar seus impulsos e desejos. Atuando na sociedade onde se insere, o espírita oferecerá os exemplos possíveis, de ação solidária, fraterna, honestidade e justiça, sem se isolar ou deixar de ser jovial.
Ensinam os espíritos que cada um, da sua forma, poderá amadurecer – dentro de si – esse novo mundo, com o qual todos sonham. Certamente, um aspecto determinante de toda essa problemática, ocorre a partir das mudanças psíquicas na vida mental dos indivíduos. Evidentemente, temos os complicadores sociais, como o fator cultural, as estruturas mentais da sociedade que influenciam a família e a educação.
Apesar do pessimismo filosófico, que de certa forma tem sido característico da cultura Ocidental contemporânea, a perfectibilidade faz parte do espírito humano. O filósofo Jacques Julliard, tratando sobre o progresso escreveu: “Mas sobretudo, não ousamos imaginar um progresso moral da humanidade repousando sobre uma melhoria das condições de existência.” O progresso não é uma mera teoria criada na modernidade, mas, uma lei inexorável da vida.
Ao concluir o último capítulo de A Gênese , Allan Kardec praticamente de forma conclusiva, escreve: “A regeneração da humanidade, portanto, não exige absolutamente a renovação integral dos Espíritos: basta uma modificação em suas disposições morais. Essa modificação se opera em todos quantos lhe estão pré-dispostos, desde que sejam subtraídos à influência perniciosa do mundo.” Em tempos de crise de paradigmas, de fragilização de valores afirmativos da existência, de inquietudes e incertezas do mundo pós-globalizado, o texto kardequiano apresenta um enorme potencial filosófico, de referência sempre atual, para pensarmos em alternativas viáveis ao melhoramento da humanidade.
Evidentemente, Kardec não se referia a uma moral religiosa, caracterizada pelo artificialismo. Uma conduta artificial não renova ninguém, cria uma máscara temporária, para dar a impressão de pureza. Os apelos do mundo aí estão, fazem parte de nosso cotidiano, mas caberá a cada um delimitar o uso de sua liberdade. Tudo posso, mas nem tudo me convém! O equilíbrio interior é, certamente, o imperativo do progresso ético-espiritual do homem contemporâneo.
Hoje, parece óbvio que a saída para resolvermos os conflitos do espaço humano e social requer que busquemos um outro caminho. Esse “outro” caminho não é simples, pois exige trabalho e determinação. Não se trata de uma revolução social, impositiva, mas de uma “revolução individual” com base na consciência de que não estamos no mundo por um mero fatalismo biológico e que, portanto, necessitamos compartilhar uma ética do cuidado, comprometida com as Leis Morais da vida, orientadoras, em última instância, desse grande processo de renovação.
REFERÊNCIAS POR ORDEM DE CITAÇÃO NO TEXTO
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Conclusão V.
KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII – São chegados os tempos. Item 25..
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Conclusão VII.
DENIS. Léon. Socialismo e Espiritismo. 2ª ed. Matão-SP: Casa Editora O Clarim, 1987.
JULLIARD, Jacques. Progresso. In. Café Philo: As grandes indagações da filosofia. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. P. 107-111.
KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII, item. 33.
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