segunda-feira, 21 de julho de 2014

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Jerri Almeida
A aspiração por uma sociedade mais justa e feliz, esteve presente em vários momentos na história do pensamento ocidental. O humanista inglês Thomas More, ao escrever seu livro A Utopia, no século XVI, imaginou uma ilha aonde seus habitantes viviam felizes, num sistema social justo e sábio, retomando a ideia da república em Platão. Condorcet, no final do século XVIII, havia escrito nas páginas de seu Tableau, dez etapas para o avanço triunfal da humanidade, rumo à ciência, à sabedoria e à felicidade.  Mais tarde, Victor Hugo, em sua magistral obra: Os Miseráveis, de 1862, escreveu: “Cidadãos, o século XIX é grandioso, mas o século XX será feliz [...]. Não se terá mais a temer a fome e a exploração, [...] a miséria, as batalhas e todas as rapinagens do acaso na floresta dos acontecimentos. Poder-se-ia quase dizer: não haverá mais acontecimentos. Seremos felizes.[...]”. Havia um imaginário, um otimismo literário no tocante aos avanços e promessas de um mundo melhor, trazido pelo desenvolvimento científico.
Atravessamos os portais da história e chegamos ao século XXI, triunfantes na inteligência mas, vivendo os inúmeros dilemas e mutações de um mundo que aspira renovação. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, afirmou que a maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada, acima de tudo, pelo dever de consumir, associado a uma cultura que preconiza o individualismo. Bauman considerou que há uma ressonância natural entre o estímulo para se viver o “agora”, ocasionada pela tecnologia compressora do tempo, e a lógica da economia orientada para o consumidor. [1]
Continuadamente exposto a novas tentações, num estado de constante excitação, o ser humano da sociedade pós-globalizada, vive sua constante insatisfação. Vivem-se ávidos por novas atrações e sensações e, logo que estas são satisfeitas, outras necessidades surgem sedutoras, convidando os indivíduos a um novo consumo.
Apesar dos avançou da biotecnologia e da tecnociência, vivemos confinados ou encarcerados em burgos modernos, diante da necessidade de segurança, posto que a violência atinge, em escala planetária, níveis alarmantes. O consumidor é consumido pela cultura que induz ao individualismo e menospreza o valor da condição humana. Nada, estranho, portanto, que a depressão, a insônia e outras patologias ocupem lugar de destaque no cotidiano de tantas criaturas.
Recentemente, um grupo de pensadores, do Brasil e de outros países, reuniu-se num evento intitulado: “Mutações: A condição humana”[2]. Psicanalistas, filósofos, críticos de arte, sociólogos, analisaram as novas configurações do mundo atual. Algumas conclusões podem ser destacadas: o homem contemporâneo vem perdendo sua imagem, ou seja, nossa civilização vive uma espécie de crise de identidade, mergulhada num vazio, onde concepções políticas,  crenças, ideias, referenciais, que antes pareciam dar sentido a existência, perdem o seu valor.[3]
A sociedade ocidental, vivendo seus impasses mutações e possibilidades, vem atravessando diversos ciclos, notadamente, sob a égide de um pragmatismo materialista. O Ocidente se tornou “cristão”, mas – para usarmos uma expressão de Signates – não se “cristianizou”. Atingimos, nesses tempos de pós-modernidade, o fenômeno da mundialização da comunicação e da hipercomputação, os avanços da biotecnologia, e, mesmo assim, onde está o homem? 
Para Novaes: “[...] estamos na confluência de dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro que ainda não começou inteiramente e, por isso, as velhas definições e conceitos tornam-se inoperantes.” [4] Vivemos uma qualificação da técnica e uma desqualificação da sensibilidade. Isso, de certa forma, nos leva a uma ruptura com a ideia de civilização construída sob a égide do estágio hegemônico da técnica, para vislumbrarmos uma ideia de civilização centrada no humano, na sensibilidade e nos sentimentos.
Os mais pessimistas poderão pensar numa “quase-morte do sujeito”, onde a noção de verdade, de esperança, as ideologias, estariam solapadas pela ruptura com um tempo linear, uma vez que se vive no Time is money ou Moneyteísmo.  Tudo é veloz e volátil e a noção de tempo se fixa, exageradamente, no presente. A grande tragédia do homem pós-moderno, é a de ter perdido o endereço de si mesmo. Apesar de tudo, o espírito continua sendo o fundamento da vida! É necessário retomarmos um otimismo espiritual, não utópico, mas fundamentado numa consciência que agrega, solidamente, o saber físico e metafísico, resgatando o papel do sujeito, espírito imortal e pluriexistencial.
O imperativo da vida coloca o sujeito como ser co-criador-criativo. Na prática, o ser se constrói e autoafirma através de processo que envolve, desde a experiência (individual e social), o conhecimento intelectual e os sentimentos. Na medida em que o sujeito perde suas certezas metafísicas, como advertiu Jung, ele termina por mergulhar – e por extensão a própria humanidade – numa crise de identidade consigo mesmo. [1]
Nesse sentido, o processo de transformação social da humanidade, não pode ser desvinculado do processo de evolução espiritual do próprio homem. Quanto mais o sujeito se cerca de elementos sobre sua condição profunda, menos “vazio” vive. Na falta desses elementos, o ser humano (que tenta superar esse vazio) termina preenchendo seu “espaço mental” com conquistas externas, importantes, mas sempre vulneráveis.
Na segunda metade do século XIX, Allan Kardec analisou as três fases do Espiritismo e mencionou, em discurso durante a Viagem Espírita de 1862, que a terceira fase seria a da “transformação social.” Um ano depois, ao publicar na Revista Espírita de 1863[2], escreveria a respeito da influência do pensamento espírita na sociedade humana, identificando, agora, seis períodos pelos quais a Doutrina dos Espíritos passaria:

1.Período da Curiosidade
2.Período Filosófico
3.Período da Luta
4.Período Religioso
5.Período Intermediário
6.Período da Renovação Social

O último período mencionado pelo codificador é o que, nesse momento, nos interessa. Kardec volta a insistir numa “renovação social.” Tema que, obviamente, ele já havia tratado em O Livro dos Espíritos, [3] e retomaria numa análise mais detalhada em A Gênese, onde afirmou: 

A Humanidade tem realizado, até ao presente, incontestáveis progressos. Os homens, com a sua inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado, sob o ponto de vista das ciências, das artes e do bem-estar material. Resta-lhes ainda um imenso progresso a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a fraternidade, a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral. Não poderiam consegui-lo nem com as suas crenças, nem com as suas instituições antiquadas, restos de outra idade, boas para certa época, suficientes para um estado transitório, mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje um entrave. Já não é somente de desenvolver a inteligência o de que os homens necessitam, mas de elevar o sentimento e, para isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo e o orgulho. [4] [Grifos meus]

Allan Kardec reconhece o valor da inteligência, ou da técnica, mas enfatiza a necessidade de “elevar o sentimento”. A noção de sentimento, nesse caso, não implica numa negação do sujeito enquanto ser desejante, mas numa necessária afirmação da sensibilidade, de alguém que consegue perceber o outro, sem ser arrogante. Essa afirmação de Kardec, também, nos leva a pensar sobre a relação entre sentimento-progresso-pensamento, na medida em que o processo de transformação social envolve, de forma determinante, a condição espiritual. Quando os sentimentos nobres iluminam o pensamento, o progresso global supera seus vazios e paradoxos.
Mas também, Kardec ofereceu mais informações sobre o caráter dessa transformação: “Nestes tempos, porém, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a certa região, ou a um povo, a uma raça. Trata-se de um movimento universal, a operar-se no sentido do progresso moral.”.[5]  A moral é uma questão central dentro dessa ordem de transformações sociais, pois está, também, associada aos sentimentos.
Sabemos que o Espiritismo, no sentido filosófico, compreende a moral enquanto regra de bem proceder. Mas a ideia de moral aqui definida, abarca também o sentido ético, ou seja, essas “regras” devem vir de “dentro” do sujeito. Nesse caso, estamos dizendo que essas regras são “princípios de valores”, conquistados pelo próprio sujeito/espírito.  Portanto, a moral está associada àquilo que podemos chamar de “sentimentos de valor universal”.
Nesse sentido lembremos Léon Denis quando escreveu que: “o estado social não sendo em seu conjunto senão o resultado dos valores individuais, importa antes de tudo de obstinar-nos nessa luta contra nossos defeitos, nossas paixões, nossos interesses egoístas. Enquanto não tivermos vencido o ódio, a inveja, a ignorância, não se poderá estabelecer a paz, a fraternidade, a justiça entre os homens; e a solução dos problemas sociais permanecerá incerta e precária.”[6]
Somos sujeitos da história. Vivemos, é bem verdade, uma crise civilizacional que nos fornecerá novos elementos para retomarmos valores atemporais, esquecidos nas entranhas da pós-modernidade.



[1] BOECHAT, Walter. A Mitopoese da Psique: mito e individuação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. P. 158-159.
[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita – Dezembro/1863 -  Período de Lutas.
[3] Especialmente nas Leis de Progresso, Sociedade e Destruição. Destacamos, entre outras, as questões: 784, 785, 793, 799 e 800.
[4] KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII – São chegados os tempos. Item 5.
[5] KARDEC, Allan. A Gênese. Cap. XVIII – São chegados os tempos. Item 6.
[6] DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. 2ed. Matão-SP: Casa Editora O Clarim, 1987. P. 66-67.. 




[1] BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 88,89.
[2] O Evento foi realizado no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e contou com um ciclo de 10 conferências, entre os dias 11 a 22 de maio de 2009.
[3] Cf. NOVAES, Adauto. As novas configurações do mundo. In. Caderno Cultura. Jornal Zero Hora. Porto Alegre, sábado 16 de maio de 2009. Pág. 2.
[4] Idem. 

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