Jerri Almeida
A aspiração por uma
sociedade mais justa e feliz, esteve presente em vários momentos na história
do pensamento ocidental. O humanista inglês Thomas More, ao escrever seu livro
A Utopia, no século XVI, imaginou uma ilha aonde seus habitantes viviam
felizes, num sistema social justo e sábio, retomando a ideia da república em
Platão. Condorcet, no final do século XVIII, havia escrito nas páginas de seu Tableau, dez etapas para o avanço
triunfal da humanidade, rumo à ciência, à sabedoria e à felicidade. Mais tarde, Victor Hugo, em sua magistral
obra: Os Miseráveis, de 1862,
escreveu: “Cidadãos, o século XIX é grandioso, mas o século XX será feliz
[...]. Não se terá mais a temer a fome e a exploração, [...] a miséria, as
batalhas e todas as rapinagens do acaso na floresta dos acontecimentos.
Poder-se-ia quase dizer: não haverá mais acontecimentos. Seremos
felizes.[...]”. Havia um imaginário, um otimismo literário no tocante aos
avanços e promessas de um mundo melhor, trazido pelo desenvolvimento
científico.
Atravessamos os portais
da história e chegamos ao século XXI, triunfantes na inteligência mas, vivendo
os inúmeros dilemas e mutações de um mundo que aspira renovação. O sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, afirmou que a maneira como a sociedade atual molda seus
membros é ditada, acima de tudo, pelo dever de consumir, associado a uma cultura
que preconiza o individualismo. Bauman considerou que há uma ressonância
natural entre o estímulo para se viver o “agora”, ocasionada pela tecnologia
compressora do tempo, e a lógica da economia orientada para o consumidor. [1]
Continuadamente exposto a
novas tentações, num estado de constante excitação, o ser humano da sociedade
pós-globalizada, vive sua constante insatisfação. Vivem-se ávidos por novas
atrações e sensações e, logo que estas são satisfeitas, outras necessidades
surgem sedutoras, convidando os indivíduos a um novo consumo.
Apesar dos avançou da
biotecnologia e da tecnociência, vivemos confinados ou encarcerados em burgos
modernos, diante da necessidade de segurança, posto que a violência atinge, em
escala planetária, níveis alarmantes. O consumidor é consumido pela cultura que
induz ao individualismo e menospreza o valor da condição humana. Nada,
estranho, portanto, que a depressão, a insônia e outras patologias ocupem lugar
de destaque no cotidiano de tantas criaturas.
Recentemente, um grupo de
pensadores, do Brasil e de outros países, reuniu-se num evento intitulado:
“Mutações: A condição humana”[2].
Psicanalistas, filósofos, críticos de arte, sociólogos, analisaram as novas
configurações do mundo atual. Algumas conclusões podem ser destacadas: o homem
contemporâneo vem perdendo sua imagem, ou seja, nossa civilização vive uma
espécie de crise de identidade, mergulhada num vazio, onde concepções
políticas, crenças, ideias,
referenciais, que antes pareciam dar sentido a existência, perdem o seu valor.[3]
A sociedade ocidental,
vivendo seus impasses mutações e possibilidades, vem atravessando diversos
ciclos, notadamente, sob a égide de um pragmatismo materialista. O Ocidente se
tornou “cristão”, mas – para usarmos uma expressão de Signates – não se
“cristianizou”. Atingimos, nesses tempos de pós-modernidade, o fenômeno da
mundialização da comunicação e da hipercomputação, os avanços da biotecnologia,
e, mesmo assim, onde está o homem?
Para Novaes: “[...]
estamos na confluência de dois mundos, um que não acabou inteiramente e outro
que ainda não começou inteiramente e, por isso, as velhas definições e
conceitos tornam-se inoperantes.” [4]
Vivemos uma qualificação da técnica e uma desqualificação da sensibilidade.
Isso, de certa forma, nos leva a uma ruptura com a ideia de civilização
construída sob a égide do estágio hegemônico da técnica, para vislumbrarmos uma
ideia de civilização centrada no humano, na sensibilidade e nos sentimentos.
Os mais pessimistas
poderão pensar numa “quase-morte do sujeito”, onde a noção de verdade, de
esperança, as ideologias, estariam solapadas pela ruptura com um tempo linear,
uma vez que se vive no Time is money
ou Moneyteísmo. Tudo é veloz e volátil e a noção de tempo se
fixa, exageradamente, no presente. A grande tragédia do homem pós-moderno, é a
de ter perdido o endereço de si mesmo. Apesar de tudo, o espírito continua
sendo o fundamento da vida! É necessário retomarmos um otimismo espiritual, não
utópico, mas fundamentado numa consciência que agrega, solidamente, o saber
físico e metafísico, resgatando o papel do sujeito, espírito imortal e
pluriexistencial.
O imperativo da vida
coloca o sujeito como ser co-criador-criativo. Na prática, o ser se constrói e
autoafirma através de processo que envolve, desde a experiência (individual e
social), o conhecimento intelectual e os sentimentos. Na medida em que o
sujeito perde suas certezas metafísicas, como advertiu Jung, ele termina por
mergulhar – e por extensão a própria humanidade – numa crise de identidade
consigo mesmo. [1]
Nesse sentido, o processo
de transformação social da humanidade, não pode ser desvinculado do processo de
evolução espiritual do próprio homem. Quanto mais o sujeito se cerca de
elementos sobre sua condição profunda, menos “vazio” vive. Na falta desses
elementos, o ser humano (que tenta superar esse vazio) termina preenchendo seu
“espaço mental” com conquistas externas, importantes, mas sempre vulneráveis.
Na segunda metade do
século XIX, Allan Kardec analisou as três fases do Espiritismo e mencionou, em
discurso durante a Viagem Espírita de 1862, que a terceira fase seria a da
“transformação social.” Um ano depois, ao publicar na Revista Espírita de 1863[2],
escreveria a respeito da influência do pensamento espírita na sociedade humana,
identificando, agora, seis períodos pelos quais a Doutrina dos Espíritos
passaria:
1.Período da Curiosidade
2.Período Filosófico
3.Período da Luta
4.Período Religioso
5.Período Intermediário
6.Período da Renovação Social
O último período
mencionado pelo codificador é o que, nesse momento, nos interessa. Kardec volta
a insistir numa “renovação social.” Tema que, obviamente, ele já havia tratado
em O Livro dos Espíritos, [3] e
retomaria numa análise mais detalhada em A
Gênese, onde afirmou:
A Humanidade
tem realizado, até ao presente, incontestáveis progressos. Os homens, com a sua
inteligência, chegaram a resultados que jamais haviam alcançado, sob o ponto de
vista das ciências, das artes e do bem-estar material. Resta-lhes ainda um
imenso progresso a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a
fraternidade, a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral. Não
poderiam consegui-lo nem com as suas crenças, nem com as suas instituições
antiquadas, restos de outra idade, boas para certa época, suficientes para um
estado transitório, mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje
um entrave. Já não é somente de desenvolver a inteligência o de que os homens
necessitam, mas de elevar o sentimento
e, para isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo e
o orgulho. [4] [Grifos meus]
Allan Kardec reconhece o
valor da inteligência, ou da técnica, mas enfatiza a necessidade de “elevar o
sentimento”. A noção de sentimento, nesse caso, não implica numa negação do
sujeito enquanto ser desejante, mas numa necessária afirmação da sensibilidade,
de alguém que consegue perceber o outro, sem ser arrogante. Essa afirmação de
Kardec, também, nos leva a pensar sobre a relação entre sentimento-progresso-pensamento,
na medida em que o processo de transformação social envolve, de forma
determinante, a condição espiritual. Quando os sentimentos nobres iluminam o
pensamento, o progresso global supera seus vazios e paradoxos.
Mas também, Kardec
ofereceu mais informações sobre o caráter dessa transformação: “Nestes tempos,
porém, não se trata de uma mudança parcial, de uma renovação limitada a certa
região, ou a um povo, a uma raça. Trata-se de um movimento universal, a
operar-se no sentido do progresso moral.”.[5] A moral é uma questão central dentro dessa
ordem de transformações sociais, pois está, também, associada aos sentimentos.
Sabemos que o
Espiritismo, no sentido filosófico, compreende a moral enquanto regra de bem
proceder. Mas a ideia de moral aqui definida, abarca também o sentido ético, ou
seja, essas “regras” devem vir de “dentro” do sujeito. Nesse caso, estamos
dizendo que essas regras são “princípios de valores”, conquistados pelo próprio
sujeito/espírito. Portanto, a moral está
associada àquilo que podemos chamar de “sentimentos de valor universal”.
Nesse sentido lembremos
Léon Denis quando escreveu que: “o estado social não sendo em seu conjunto
senão o resultado dos valores individuais, importa antes de tudo de
obstinar-nos nessa luta contra nossos defeitos, nossas paixões, nossos
interesses egoístas. Enquanto não tivermos vencido o ódio, a inveja, a
ignorância, não se poderá estabelecer a paz, a fraternidade, a justiça entre os
homens; e a solução dos problemas sociais permanecerá incerta e precária.”[6]
Somos sujeitos da
história. Vivemos, é bem verdade, uma crise civilizacional que nos fornecerá
novos elementos para retomarmos valores atemporais, esquecidos nas entranhas da
pós-modernidade.
[1]
BOECHAT, Walter. A Mitopoese da Psique:
mito e individuação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008. P. 158-159.
[2]
KARDEC, Allan. Revista Espírita –
Dezembro/1863 - Período de Lutas.
[3]
Especialmente nas Leis de Progresso, Sociedade e Destruição. Destacamos, entre
outras, as questões: 784, 785, 793, 799 e 800.
[6] DENIS, Léon. Socialismo e Espiritismo. 2ed.
Matão-SP: Casa Editora O Clarim, 1987. P. 66-67..
[1] BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As consequências humanas.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 88,89.
[2] O Evento foi realizado no Salão
de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e contou com um ciclo de
10 conferências, entre os dias 11 a 22 de maio de 2009.
[3]
Cf. NOVAES, Adauto. As novas
configurações do mundo. In. Caderno Cultura. Jornal Zero Hora. Porto
Alegre, sábado 16 de maio de 2009. Pág. 2.
[4]
Idem.
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