domingo, 5 de julho de 2009

ÉTICA KARDEQUIANA PARA A CONVIVÊNCIA - Parte I


Preâmbulo

Em uma de suas maravilhosas fábulas, Esopo conta que uma andorinha tinha feito o seu ninho dentro de um tribunal. Em determinado momento a andorinha necessitou se afastar do ninho. Uma serpente apareceu e devorou seus filhotes. Quando a andorinha voltou e viu o ninho vazio, aterrada pela dor, pôs-se a chorar. Uma andorinha amiga tentou consolá-la, dizendo que ela não era a única a quem acontecia tal situação. Então, a mãe, desconsolada, respondeu: “O que me aflige é ter sofrido essa situação num lugar em que os ultrajados geralmente são assistidos”.
Trata-se de uma fábula, que pode ser bem aplicada em nossa reflexão sobre a convivência. Muitas vezes os conflitos existem em lugares onde poderíamos supor que não haveriam. Ora, talvez alguém pudesse imaginar que, em uma instituição espírita, por abrigar pessoas imbuídas do sentimento de fraternidade, tais conflitos estivessem equacionados ou, pelo menos, atenuados. Dessa forma, poderíamos pensar o Centro Espírita, no contexto da fábula, como o espaço do “tribunal”. Seria, portanto, o espaço onde deveria prevalecer a justiça, ou a fraternidade. Mas, não foi nesse tribunal que a serpente atacou os filhotes da andorinha?

Dos Cismas

Quando escreveu sobre a Constituição do Espiritismo, Kardec expôs os motivos que conduziam ao fracasso certos grupamentos espíritas. A falta de programas claramente traçados ensejaria, entre outras coisas, a “causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades...”. A preocupação de Kardec, no entanto, vai mais longe. Logo percebe uma questão que de início se apresentava no seio do Movimento Espírita: “os cismas”. Percebia, na verdade, que o Espiritismo, enquanto movimento organizado por pessoas humanas, não poderia escapar às fraquezas do próprio ser humano.
Kardec examinava, nesse limiar do Movimento Espírita, as fraquezas dos espíritas na busca dos exclusivismos de natureza orgulhosa, gerando desagregações desnecessárias e improdutivas entre aqueles que, seguindo a advertência Cristã, deveriam “muito se amar”. Não raro, as divergências quiméricas no interior das Instituições espíritas, renovam – no início do século XXI – as preocupações manifestadas por Kardec. A falta de pragmatismo evangélico, principalmente ao exercício do “perdão”, entre os “irmãos de ideal” converge para imperiosas reflexões sobre a “nossa-forma-de-ser-espírita”, distanciados, muitas vezes, dos preceitos de virtude que tanto divulgamos para os outros.
A convivência no Centro Espírita deveria servir como admirável laboratório para o exercício da compreensão e do entendimento entre as criaturas que, unidas por um ideário de espiritualização, dedicam-se à tarefa, pelo menos em tese, de renovação interior. As divergências, portanto, deveriam ser instrumentos úteis de reflexão e aprendizado convivencial, jamais de dissidência ou deserção. O que ocorre, é que o ferimento de susceptibilidades de companheiros inconstantes, termina por estimular os temperamentos mais imaturos, cuja falta de firmeza, conduz aos recuos de seus postos de trabalho.
O crescimento do trabalhador espírita consiste em sua perseverança e autodeterminação no exercício do bem, nas mais diversas e hostis situações, dentro e fora da Instituição espírita. Ninguém é insubstituível. Deve-se perceber claramente que o ato de servir nas lides do bem é, antes de tudo, uma oportunidade ímpar para o próprio servidor. Mas os trabalhos terão estrutura própria, ficando sempre nas “mãos” do Criador, a diretriz fundamental. Significa dizer que Deus não necessita de nós para que suas leis se cumpram, pois quando um trabalhador abandona seu posto, outros tendem a lhe suceder.
Sobre essa questão das dissidências Allan Kardec já anotava:

Se alguns de seus adeptos vierem a afastar-se, é que se acreditarão capazes de fazer coisa melhor; se realmente fizerem algo melhor, ela (a Doutrina) se esforçará por fazer outro tanto; se fizerem coisa má, deixará que a façam, certa de que, cedo ou tarde, o bem sobrepuja o mal e o que é verdadeiro predomina sobre o que é falso.


O problema é, pois, de séria responsabilidade individual. Se conviver é um desafio natural da evolução, os conflitos de interesses devem se orientar pelos ensinos evangélicos ou doutrinários. Chegamos a um momento crítico onde necessitamos realizar uma profunda revisão dos valores que realmente já introjetamos ou que ainda nos faltam.
Kardec se reporta ao prejuízo desses cismas na Instituição Espírita:

A causa mais comum de separatividade entre co-interessados é o conflito de interesses e a possibilidade de uns suplantarem os outros, em proveito próprio. Esta causa não pode existir, no momento em que o prejuízo de um em nada aproveitará aos outros; desde que todos são solidários e somente podem perder, em vez de ganhar, com a desunião.

A desunião é, em muitos casos, protagonizada pelo sentimento de melindre. O melindroso é alguém que preserva de forma muito intensa em sua personalidade, determinadas características da personalidade infantil. Um exemplo clássico no comportamento de pessoas melindrosas é o fato de não aceitarem ser contrariadas, ou ouvir um “não” como resposta.

As almas frágeis

As “almas frágeis”, quando algo ou alguém fere sua suscetibilidade, reagem instantaneamente protegendo-se com a carapaça do melindre. Compreendemos que o melindre seja um mecanismo subjetivo de autoproteção do ego, um artifício da personalidade, que se “fecha”, semelhante a uma “ostra”, quando percebe algum tipo de situação desestabilizadora, como a “crítica”, mesmo positiva. O melindre pode ser, também, compreendido como a resistência psíquica, consciente ou inconsciente, em permanecer nos mesmos, e velhos, padrões de comportamento. Logo, o melindre é um mecanismo de fuga do autoconhecimento.
Quando a pessoa se sente melindrada, deve se questionar: Por que tal situação me desagradou? Se alguém falou algo que é verdadeiro, o fato de nos melindrarmos tipifica uma ressonância em nossas estruturas internas, que estão em desalinho com a verdade, por isso, ao ouvi-la, ela nos causa um desagrado. Nesse caso, é importante saber “olhar para dentro de si”. Mas Kardec cita um outro exemplo:

“A exaltação da personalidade leva o homem a considerar-se acima dos outros. Julgando-se com direitos superiores, melindra-se com o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos.”

No caso em questão, Kardec alude ao orgulho. Esse é um caso complexo pois a pessoa sente-se no ápice de sua “superioridade”, tornando-se refratária a todo e qualquer estímulo à reflexão sobre seus próprios sentimentos. Em tais casos, o condicionamento para o melindre ou o ressentimento sistemático, pode manifestar uma representação de poder do tipo: “Ninguém pode discordar de mim;” ou, “Minhas idéias devem sempre prevalecer;” ou ainda: “O que eu faço não pode estar sujeito a críticas.” Quando essa instância de poder é desestabilizada por alguém, o indivíduo se magoa, buscando isolar-se ou distanciar-se daquela pessoa ou grupo, como forma de preservar a sua velha estrutura emocional, orgulhosa.

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