Muitos pesquisadores, ou mesmo escritores, se dizem “regionalistas”, defensores de uma produção literária localista. A rigor, consideram-se imbuídos da “missão” de salvaguardar os elementos identitários da região. Do ponto de vista teórico, entretanto, a discussão é muito mais ampla e exige a apreciação de múltiplas questões, normalmente, ignoradas ou simplificadas arbitrariamente. Para alguns autores o regionalismo é uma questão problemática, ainda não totalmente digerida academicamente. O problema já começa com a própria palavra. O vocábulo “regionalismo” deriva de “regional” ou “região”, todavia, no terreno das ciências sociais – e aqui não estamos discutindo um conceito meramente geográfico – a discussão se complexifica.
Há um critério levantado por Fischer, que se refere à idéia de Imperialismo, ou seja, temos um centro detentor do poder e o resto que permanece em sua órbita: o regional ou periférico. Estende-se, também, a dimensão do regionalismo ao paralelismo entre o mundo urbano e sua cultura e o mundo rural, questão interposta, no Ocidente, a partir do Renascimento (Séc. XV-XVI). É o período de transição do mundo feudal para o mundo burguês, do medievo para a modernidade. No processo de constituição da nacionalidade brasileira, o romantismo desempenhou papel intelectual relevante, considerando a vastidão do território nacional, predominantemente rural, e a figura do índio ou nativo. Pensava-se nas distantes Províncias como o caso do Pará, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul, e suas “singularidades” no extenso Brasil.
Conforme Fischer, com esse sentido localista passou-se a nutri, no interior dessas mesmas Províncias, um sentimento ressentido e, mesmo, separatista, no propósito de singularizar a “parte” do “todo”. Flávio Loureiro Chaves concorda que o regionalismo, no Rio Grande do Sul, se originou e evoluiu a partir de uma tradição romântica, numa perspectiva de documentar o espaço local e seu cenário típico, do folclore e dos falares regionais no universo ficcional. Essa ideologia do regionalismo, no entanto, quase sempre corre o risco do excesso de idealização, um acentuado realismo, por vezes demarcando uma zona de conflito entre o real e o imaginário.
O regionalismo rio-grandense se corporificou associado, também, a um ideário de tradição. Dê que tradição estamos falando? Sabemos que sociedades tradicionais se constituem através de processos históricos de longa duração, e mantém-se em situações de difícil mutabilidade. Nesse sentido, os papéis sociais e culturais são milenarmente estabelecidos, de tal forma que as novas gerações sentem-se a eles plenamente pertencentes. O regionalismo idealizado pelo romantismo brasileiro configura uma “tradição” ficcional e lúdica. No Rio Grande do Sul do século XIX, não tínhamos uma sociedade tradicional, mas conservadora.
Em sua sinuosidade, pode-se pensar o regionalismo como uma forma de dissociar o particular do universal. Para Chaves, o regionalista entende o indivíduo apenas como síntese do meio a que pertence. Portanto, o regionalismo é uma forma de isolamento, forma um tanto ingênua, de separar a parte do todo, de fragmentação da realidade sob a égide de uma identidade arquetípica, talvez melhor explicada por Jung.
Conceituar uma obra ou autor de “regionalista” já se trata de impor um “limite” complexo para o universo da arte que, conforme Aristóteles em sua Poética: é o “espaço da possibilidade”. Considerar esse ou aquele escritor um regionalista é, por certo, ter um olhar simplificador sobre sua obra. A complexidade em se tratar o regionalismo na literatura é se pensar que, apesar de certos escritores construírem seus enredos abarcando espaços geográficos e culturais delimitados, o núcleo abordado termina enfatizando questões universais. O folclore é universal! O sofrimento, o amor, a opressão social, os conflitos familiares, os encontros e desencontros amorosos, as misérias, não estão em toda parte?
O romance A Viuvinha, de José de Alencar, por exemplo, narra a história de Jorge, filho de um negociante rico que falecera, e que foi criado por velho amigo de seu pai. Quando chega à maioridade, e passando a tomar conta de seu patrimônio, Jorge descobre os prazeres que o dinheiro pode proporcionar e entrega-se aos seus desejos e vaidades. Mas a busca desenfreada e delirante do gozo o faz sentir um vácuo e, surge o tédio. Com o tédio, a solidão. Percebendo que a felicidade não estava no delírio do prazer, Jorge busca num templo religioso aquele “algo mais” que representa os anseios mais profundos do ser humano. Mas a vida é curiosa! Nesse templo, o personagem de Alencar conhece uma jovem, de 15 anos – Carolina – por quem se apaixona perdidamente. Pouco tempo depois, já estavam com o casamento marcado e, ambos, com os corações enternecidos, almejavam o sonho de toda a humanidade: a felicidade.
Mas a felicidade inconstante, na trama de A Viuvinha, não se distancia muito da vida real. O que ocorre é que o desfecho literário buscou, na maioria das vezes, sintetizar as aspirações humanas por um “final feliz”. Não raro, a questão da felicidade está associada, no texto ficcional, a um amor romântico que, a cada nova cena, se vê cercado de crises e obstáculos, distanciando os protagonistas, e por extensão o próprio leitor, de seu ideal de plenitude e realização que deve ser atingido somente nas últimas páginas do livro.
Percebe-se a universalidade do texto literário, justamente por ele enfocar questões essenciais para o ser humano independentemente do tempo, da cultura, e do espaço. Em Olhai os lírios do campo, Eugenio, personagem central do romance de Érico Veríssimo, caminhando em uma madrugada pelas ruas desertas, passa em revista sua vida e, diante dos problemas enfrentados, indaga-se se um dia chegaria a encontrar a paz interior, tão almejada. Relendo as cartas de Olívia, sua antiga amiga e depois amante, Eugenio começa a vislumbrar, nelas, um rico manancial de ensinamentos. Eugenio é de família pobre vivendo no período de 1914/1930, período da República Velha. O romance discute, também, os conflitos sociais da época, conduzindo o leitor, de alguma forma, a pensar sobre essas questões no presente.
Em O Continente temos uma natureza dinâmica e simbólica, expressa num elemento permanente: o vento. Para Donaldo Schüler, (Apud. SURO, p. 148-149), o ato de “soprar” evoca o passado, e essa relação do leitor com o tempo, é trabalhado em planos narrativos diferentes: o passado recente, que vai desde a madrugada do dia 25 de junho de 1895, até a manhã do dia 27 do mesmo mês; e o passado remoto, que começa em abril de 1745 até 1895, perfazendo um período de 150 anos. Segundo alguns estudiosos, O Continente expressa uma teoria cíclica da história. Para Suro, no entanto: “O que acontece é que esse tempo histórico é regido por uma estrutura cíclico-mítica, baseada na natureza, que faz com que se repetem basicamente os mesmos processos históricos de geração em geração.” (Idem, p. 149)
Ora, essa é uma questão determinante para pensarmos a fragilidade do conceito de “regionalismo” na literatura, fundado numa concepção restrita de isolamento ou de fragmentação entre o específico e o geral. Entendemos que a literatura, por mais que trabalhe com questões localizadas, estará sempre, como uma espécie de fio-condutor, discutindo questões pertinentes ao universo humano e, nesse sentido, qualquer rótulo é impor-lhe um limite desnecessário.
Bibliografia
CHAVES, Flávio Loureiro. Simões Lopes Neto: Regionalismo & Literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.
CHAVES, Flávio Loureiro. Érico Veríssimo: Realismo & Sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura Brasileira. Modos de usar. Porto Alegre: L&PM (Coleção L&PM Pocket), 2008.
SURO, Joaquim Rodriguez. Érico Veríssimo: História e Literatura. Porto Alegre: DC Luzatto Editores Ltda, 1985.
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