segunda-feira, 6 de abril de 2020
domingo, 21 de junho de 2015
O inquietante problema do futuro do Ser - Ponderações em torno da obra O Céu e o Inferno e seus 150 anos de publicação!
Jerri Almeida[1]
O
grave problema da continuidade da vida após a morte despede-se dos aparatos
mitológicos para mostrar-se com a nudez da verdade à luz da razão esclarecida.
J. Herculano Pires[2]
Preâmbulo
Na introdução de sua magnífica obra História do medo no Ocidente, o
historiador francês Jean Delumeau, conta em depoimento pessoal, que quando
tinha dez anos, em uma noite de março, um farmacêutico muito amigo de seus pais
morrera de forma súbita. A notícia chegou em sua casa e, naquele momento, ele
descobriu o soberano poder da morte. Ela atinge pessoas com boa saúde e de
qualquer idade. Sentia-se frágil, ameaçado; um medo visceral instalou-se em sua
mente. Ficou doente por três meses, durante os quais foi incapaz de ir à
escola.
Dois anos depois, seus pais o transferiram
para um colégio de orientação religiosa (salesiano). A manhã da primeira
sexta-feira de cada mês era consagrada às “litanias da boa morte”, ou seja, os
alunos, na faixa dos doze anos, eram reunidos para a leitura de um texto ou de
orações que traduziam inquietações sobre a morte, sempre seguidas da frase:
“Misericordioso Jesus, tende piedade de nós”. Essa prática, na essência,
refletia uma longa tradição da pedagogia religiosa. No centro dessas frases
dramáticas, que as crianças regularmente repetiam, estava a ideia da “culpa”,
minando suas consciências, vinculada a uma teologia do medo. Delumeau relata
que durante todo mês, num período de dois anos que permaneceu nessa escola, o
traumatizante conteúdo religioso fortaleceu ainda mais seu medo, não somente
pela morte, mas pelo que viria para muitos após ela: o inferno[3].
O inquietante problema do futuro do Ser, com
seus possíveis castigos e punições eternas, ou com sua consagração ao eterno
ócio, nada criativo, serviu para formatar uma educação para atemorizar ou
tornar cético os indivíduos: “Outra razão que amarra às coisas terrenas até
mesmo as pessoas que acreditam firmemente na vida futura, liga-se à impressão
que conservam de ensinamentos recebidos na infância. O quadro apresentado pela
religião, a esse respeito, temos de convir que não é muito sedutor nem
consolador.”[4]
A publicação por Allan Kardec, de O Céu e o Inferno, representou uma
verdadeira ruptura epistemológica tanto em relação aos mitos ancestrais das
culturas agrárias, como com o discurso culpabilizador das teologias do medo. Kardec
tem a coragem do investigador, e a competência do pedagogo para examinar
comparativamente os ensinos de alguns sistemas teológicos, com o espiritismo
nascente.
Nesse artigo, pretendemos discutir a
importância desse livro no conjunto da obra kardequiana e suas contribuições
para o debate sobre o futuro do Ser, o que implica, inexoravelmente, numa nova
perspectiva de reflexão sobre o significado e funcionamento da Justiça Divina.
Objetivo e
significação
O problema do destino, sob o desvelar da
investigação dos fenômenos mediúnicos, descortinava claramente para Kardec, a
necessidade de uma incursão mais profunda no exame de alguns sistemas
religiosos e filosóficos mais impactantes na mentalidade do Ocidente. Certamente
suas inquietações, nesse sentido, foram ao encontro das instruções dos
espíritos mais lúcidos que o orientavam. Configurou-se o projeto de escrever
uma obra específica sobre o assunto.
Na Revista
Espírita de fevereiro de 1865, Kardec publica o texto “Da apreensão da
morte” e na edição de março, do mesmo ano, o artigo “Onde é o Céu?”. No final
desse último, há uma nota explicativa: “Este artigo, bem como o do número
precedente sobre a apreensão da morte, são extraídos da nova obra que o Sr. Allan
Kardec publicará proximamente.” Na Revista de setembro, também do mesmo ano de
1865, nas “Notícias bibliográficas” além do livro já aparecer para venda, temos
um importante texto de Kardec tecendo considerações sobre os objetivos e a
estrutura do novo livro, o que ele chamou de “um resumo do prefácio”.
O título dessa obra indica claramente o seu objetivo. Aí reunimos todos
os elementos próprios para esclarecer o homem sobre o seu destino. Como nos
nossos outros escritos sobre a doutrina espírita, aí nada introduzimos que seja
produto de um sistema preconcebido, ou de uma concepção pessoal, que não teria
nenhuma autoridade; tudo aí é deduzido da observação e da concordância dos
fatos.
E, continua seus esclarecimentos:
O Livro dos Espíritos contém
as bases fundamentais do Espiritismo; é a pedra angular do edifício; todos os
princípios da doutrina aí são apresentados, até os que devem constituir o seu
coroamento; mas era necessário dar-lhe os desenvolvimentos, deduzir-lhe todas
as consequências e todas as aplicações, à medida que se desenrolavam pelo
ensino complementar dos Espíritos e por novas observações. Foi o que fizemos no
Livro dos Médiuns e no Evangelho Segundo o Espiritismo, em
pontos de vista especiais; é o que fazemos nesta obra sob um outro ponto de
vista, e é o que faremos sucessivamente nas que nos restam a publicar, e que
virão a seu tempo.
Ao trazer para o centro das reflexões, agora
com mais amplitude, o problema do destino no plano das concepções existentes,
Kardec não o faz por mera especulação pessoal, histórica e muito menos
religiosa. Apresenta, no mínimo, cinco critérios nos quais se baseia para
fundamentar seus argumentos:
a)
Experimentação: Do método (O Livro dos Médiuns – 1ª. Parte, Cap. 3)
b)
Observação: Há espíritos? (O Livro dos Médiuns – 1ª. Parte, Cap. 1)
c)
Depoimentos: espíritos em diversas situações
psicológicas e emocionais. (O Céu e o
Inferno, 2ª. Parte, Exemplos)
d)
Concordância universal do ensino (Exame das comunicações mediúnicas que nos
enviam. In. Revista Espírita, Maio de
1863)
e)
Critério filosófico da razão e do bom-senso aplicado às informações
recebidas. (“Sou um homem positivo, sem entusiasmo, que tudo julgo friamente;
raciocínio de acordo com os fatos...” Allan Kardec. Primeira Carta ao Padre
Marouzeau, In. Revista Espírita,
Julho de 1863))
Homem aberto ao diálogo, Kardec, por vezes lembrou que:
“As ideias falsas, postas em discussão mostram seu lado fraco e se apagam ante
o poder da lógica.”[5] Assinala, ainda, que o critério de análise
para a aceitação de um conhecimento, dito espírita, está no controle do ensino
universal dos espíritos.
Na prática, significa que nenhuma verdade aparece
isoladamente. A análise do conteúdo e significado das manifestações mediúnicas,
por exemplo, foram obtidas por ele através de diferentes médiuns em diferentes
localidades. Tais manifestações, antes de serem aceitas como verdadeiras, eram
submetidas a uma análise comparativa para que se evidenciasse ou não, o consenso
e o caráter de universalidade do ensino. Kardec, utilizando-se de diferentes
médiuns, propunha-lhes temas pertinentes a certos problemas filosóficos,
científicos e morais, com o objetivo de colher esclarecimentos ou ensinamentos
compatíveis com a natureza dos assuntos investigados. Por isso, sua ênfase na
“observação” e “dedução dos fatos”, submetidos ao critério da “concordância” ou
da “universalidade do ensino”, para assim serem aceitos.
Há, naturalmente, uma busca incessante de
conhecimentos e reflexões, iniciadas em O
Livro dos Espíritos e que, evidentemente, não para com ele, nem mesmo o
esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto da obra
kardequiana, uma importante organicidade e nos convida ao estudo integrado de
seus textos, de forma a evitarmos a fragmentação da teoria.
A primeira parte de O Céu e o Inferno, denominada “Doutrina”, contém o exame
comparativo entre diversas crenças sobre a situação da alma no pós-morte, as
penas e recompensas futuras, incluindo uma discussão sobre anjos e demônios. O dogma
das penas eternas é refutado por argumentos lógicos e experimentais com base na
razão e nas leis naturais. A segunda parte, denominada “Exemplos”, apresenta interessante estudo sobre “o
passamento”, ou transição para a vida
espiritual, e o depoimento de diversos espíritos, em variáveis condições
psicológicas e emocionais. Essas narrativas adverte Kardec, não são fatos
isolados, mas representam exemplos que surgem “em toda parte onde se ocupam das
manifestações espíritas de um ponto de vista sério e filosófico”.[6]
Dessa forma, a estrutura do livro, plenamente
integrado no conjunto da teoria espírita, já que podemos inferir que ele
desdobra a parte IV de O Livro dos Espíritos,
se detém no estudo da “vida de além-túmulo”, num vasto panorama de reflexões,
onde: “cada um aí exibirá novos motivos de esperança e de consolação e novos
suportes para firmar a fé no futuro e na justiça de Deus.”[7]
Trata-se, portanto, de uma obra que irá
contrapor aos dogmas fundamentais da teologia cristã e, ao mesmo tempo, ao
pensamento da filosofia existencialista e materialista. Com isso, o pensamento
espírita, numa perspectiva dialética, rompe com a ideia de “salvação” e com a
pedagogia do medo, situando o homem na condição de espírito imortal e pluexistencial.
A dinâmica da evolução espiritual do homem transcende ao discurso reducionista
do “castigo divino” e do existencialismo vazio.
O Espiritismo, jamais se fechando em dogmas,
mas defendendo o direito ao livre exame, propõe o “filtro da evolução”, para
bebermos em águas mais límpidas o entendimento da Justiça Divina. Os exemplos
estudados por Kardec, de inúmeros indivíduos que desbravaram a fronteira da
morte, e que, sim, retornaram para contar o que encontraram, reforça o que o
pensamento grego, especialmente de Sócrates e Platão, já havia refletido.
Conclusão
Ao refletimos sobre os 150 anos da publicação
de O Céu e o Inferno, cumpre-nos
revisitar suas páginas e analisar seus conceitos. Os espíritas não devem, sob
nenhum argumento, reproduzir os velhos e superados ensinos das teologias do
medo. Com o Espiritismo, o inquietante problema do futuro do Ser, deixa de ser
tão inquietante! A vida futura se desdobra em múltiplas possibilidades
experienciais e educativas.
Desejamos, finalmente, concluir essa reflexão
com um belo texto publicado na Revista
Espírita, maio de 1863[8],
e assinado por Viennois, que resume bem o conjunto do pensamento espírita sobre
a transição para a vida espiritual e o futuro do Ser:
A passagem da vida terrena à espiritual oferece, é certo, um período de
confusão e de turbação para a maioria dos que desencarnam. Mas há alguns que,
já em vida desprendidos dos bens terrenos, realizam essa transição tão
facilmente como uma pomba que se eleva nos ares. É fácil vos dardes conta dessa
diferença examinando os hábitos dos viajantes que vão atravessar o oceano. Para
alguns a viagem é um prazer; para maior número um sofrimento vulgar, que durará
até o desembarque. Então! É, por assim dizer, para viajar da terra ao mundo dos
Espíritos. Alguns se desprendem rapidamente, sem sofrimento e sem perturbação,
ao passo que outros são submetidos ao mal da travessia etérea. Mas acontece
isto: é que assim como os viajantes que tocam à terra, ao sair do navio, recobram
o aprumo e a saúde, também o Espírito
que transpõe os obstáculos da morte acaba por se achar, como no ponto de
partida, com a consciência limpa e clara de sua individualidade.
Aí
está, portanto, a solução para os mais angustiantes problemas sobre o futuro do
Ser. Nem céu, nem inferno, mas vida pujante que se desdobra pelas veredas da
evolução. Nesse sentido, compete a cada indivíduo, o esforço natural para viver
bem, preparando-se a cada dia, para a
viagem de retorno ao seu mundo de origem, continuando suas experiências
de crescimento ético-espiritual.
NOTAS
[1] Autor dos livros: Kardec
e a revolução na fé e A Convivência na Casa Espírita.
[2] Nota sobre o livro. In. KARDEC,
Allan. O Céu e o Inferno. Trad. João
Teixeira de Paula e J. Herculano Pires. 11ª. ed. São Paulo: Lake, 2004. p.10.
[3] ALMEIDA, Jerri R. Kardec e a Revolução na fé. Porto
Alegre: Olsen, 2014. Cap.
[4] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, Primeira parte, Cap.
II, item 6.
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